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Crítica | Cabíria (1914)

Você disse... épico?

por Luiz Santiago
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É lamentável que uma obra tão seminal e visionária como Cabíria (1914) ainda não ocupe o lugar de destaque que merece no imaginário da massa cinéfila. Resultado da fusão de três fontes literárias — a crônica histórica de Tito Lívio (História de Roma Desde a Sua Fundação), o exotismo romântico de Flaubert (Salammbô) e o vigor narrativo de Salgari (Cartago em Chamas) –, o filme encarna as ambições técnicas e estéticas que marcaram os primórdios do cinema italiano, em sua grande valorização do espetáculo. Mais do que um marco tecnológico, porém, a produção explora a realidade histórica, o drama íntimo e a epopeia heroica com uma riqueza potencializada pela colaboração de Gabriele d’Annunzio, cujos intertítulos emprestam densidade poética à trama; e pela direção revolucionária de Giovanni Pastrone. Rompendo com a estaticidade cênica que ainda predominava na Sétima Arte, o diretor explorou o movimento da câmera não como mera curiosidade, mas como linguagem narrativa, apresentando coisas que ecoariam, e muito, nas décadas seguintes. O filme não apenas antecipou o cinema como espetáculo total, mas também como território de experimentação — um legado que, infelizmente, quase esquecido, pede por redescoberta.

Embora não tenha verdadeiramente inventado muitos dos seus triunfos técnicos — já vistos em curtas experimentais no Reino Unido e na Espanha, por exemplo –, o filme inaugura, em longa-metragem e num contexto grandioso, a utilização de uma câmera montada em carrinho que se desloca de forma dinâmica pelos cenários. Essa abordagem revela não apenas a amplitude dos ambientes, mas também introduz o movimento de zoom, guiando o olhar do espectador para os detalhes, criando closes e planos pouco comuns nos primeiros anos do cinema. Essa liberdade de movimento transforma a narrativa numa experiência de fluidez refinada, onde cada transição revela algo impressionante. E é claro que isso deixou uma marca definitiva na história do cinema, inspirando, de imediato, o cineasta D.W. Griffith, que se encantou com essas inovações e reorientou (em forma e conteúdo) a visão geral de Intolerância (1916).

A narrativa, aqui, se desenrola consideravelmente confusa, recriando eventos históricos grandiosos, como a erupção do vulcão Etna; a travessia dos Alpes por Aníbal; e o cerco de Siracusa, com direito a Arquimedes inventando as armas para defender a cidade. Além disso, temos a grandiosa (e muito bem filmada) sequência dos rituais de sacrifício no templo de Moloch, que inspiraria Fritz Lang a conceber uma das mais icônicas cenas de Metropolis (1927). O fio condutor de todas essas situações é a história da menina Cabíria, sequestrada e vendida como escrava, cujo destino se entrelaça com a ascensão de Roma e a queda de Cartago. Cada episódio resgata elementos de diferentes fontes, mudando constantemente a atmosfera do enredo; ao mesmo tempo em que deixa o espectador vidrado nos imensos cenários e bárbaras locações. Já em relação à narrativa, chega um ponto em que simplesmente desistimos de conectar os fios dramáticos e apreciamos o longa apenas por sua imponente dimensão. 

A contribuição do espanhol Segundo de Chomón para este filme, marcada por seu refinado domínio em efeitos especiais e pela habilidade de manipular a eletricidade para criar contrastes, resultou em algo verdadeiramente memorável. Seu trabalho proporcionou cenas que transitam com muita qualidade pelo terror, pela ação, pela ficção histórica e pela fantasia, com sequências que demonstram um profundo domínio da simulação para a câmera. Essa versatilidade é bem marcante na sequência da erupção do Etna, nas cenas de incêndios, na impactante passagem pelo templo de Moloch, no cerco de Siracusa e nas nuances oníricas em vários momentos da película. Cabíria integra um drama pessoal a uma grande escala de eventos históricos, alternando entre o sofrimento de uma família desfeita pela tragédia e a exibição de feitos grandiosos que reconstituem a trajetória de grandes civilizações e personagens que se tornaram um marco no cinema, como é o caso de Maciste, futuro ícone do peplum italiano (filmes de espada e sandália), que tem, aqui, a sua origem.

O impacto do filme está na sua capacidade de encantar o espectador através do espetáculo visual em suas imagens, figurinos, efeitos especiais, fotografia e desenho de produção. Talvez alguns espectadores vão se emocionar com os destinos dos personagens, mas não creio que isso seja muito comum para o público de hoje. O que não dá para negar é que o longa nos deixa impressionados por motivos que vão além dos dilemas dos personagens, que, sinceramente, não cativam de verdade porque não recebem a devida atenção na unidade do filme. Ao propor um novo paradigma na narrativa audiovisual, Cabíria se torna atemporal, instigando uma profunda admiração que inspirou tanto diretores quanto técnicos, e todos aqueles que, ainda hoje, admiram a transformação da arte e o trabalho dos pioneiros do cinema. É um legado perene, um convite para que o espectador se deixe envolver por uma experiência onde a magia do cinema, ainda que marcada por falhas, ultrapassa fronteiras e transforma o olhar de cada cena e cada sequência numa surpresa épica e inesquecível.

Cabíria (Cabiria) — Itália, 1914
Direção: Giovanni Pastrone
Roteiro: Giovanni Pastrone (com títulos de Gabriele D’Annunzio e baseado nos livros de Tito Lívio, Gustave Flaubert e Emilio Salgari)
Elenco: Carolina Catena, Lidia Quaranta, Teresa Marangoni, Dante Testa, Umberto Mozzato, Bartolomeo Pagano, Raffaele di Napoli, Emilio Vardannes, Edoardo Davesnes, Italia Almirante-Manzini, Alex Bernard
Duração: 148 min.

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