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Crítica | BRZRKR: O Livro de Outro Lugar, de Keanu Reeves e China Miéville

Um romance no universo de BRZRKR que subverte expectativas.

por Ritter Fan
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Considerando que tanto a maxissérie em 12 edições de BRZRKR quanto os dois one-shots reunidos no primeiro volume de Bloodlines não passam, lá no fundo, de uma ideia interessante sendo usada como desculpa para páginas e mais páginas luxuosamente desenhadas de violência extrema, exagerada e apoteótica, fazendo de Unute (ou apenas B), o personagem imortal criado pelo ator Keanu Reeves (e com sua aparência) e pelo roteirista de quadrinhos Matt Kindt, uma espécie de super-herói – ou anti-herói, como queiram – torturado por sua incapacidade de morrer, quando uma obra literária foi anunciada como parte de uma quase instantânea criação de franquia bancada por uma tremendamente bem sucedida campanha do Kickstarter iniciada pela  BOOM! Studios, tudo o que eu esperava era mais do mesmo. No entanto, depois de virar a última página de The Book of Elsewhere (que tomei a liberdade de traduzir na literalidade para o português como O Livro de Outro Lugar já que ele não foi ainda publicado por aqui), percebi que tudo o que a obra não é, para minha felicidade, é mais do mesmo.

Romance escrito em colaboração por Reeves e o autor britânico China Miéville, no que creio terem sido reuniões entre os dois para alinhavar a história e a efetiva escrita apenas por Miéville, o livro é uma exploração sobre a maldição da imortalidade e sobre a busca de uma razão de ser que funciona tanto como uma narrativa de ação quanto de contemplação e de preenchimento de espaços sobre o passado do protagonista imortal que, depois que um soldado de sua equipe é morto, mas brevemente volta à vida, passa a desconfiar de que pode haver outro como ele por aí. Mesmo que o lado da ação com o tipo de violência usual dos mencionados quadrinhos componha o romance, a grande verdade é que esse não é o foco da abordagem de Miéville.

Na verdade, é difícil colocar o dedo exatamente no objetivo do autor com seu livro, sendo mais fácil dizer o que ele não é e ele definitivamente não é uma obra de pancadaria gratuita e desenfreada como as HQs deram a entender que seria. Essa é a primeira boa notícia, claro. A outra boa notícia é que Miéville não tem a menor intenção de facilitar as coisas para o leitor. Não que ele crie uma obra impossivelmente complexa ou hermética, mas ele não escreve algo que pode ser lido sem atenção ou apenas para passar o tempo. Trata-se de uma daquelas raras obras baseadas em propriedade intelectual quente e pop, do tipo cientificamente feita para tirar todo o dinheiro dos fãs, que surpreende por exigir investimento real e não apenas casual na leitura. A terceira boa notícia é que o texto tem um caráter experimental que é ao mesmo tempo estranho e engajador, como se o autor estivesse fazendo algo que abertamente subverte expectativas.

Não tenho a menor ideia – e nem me interesso muito – se a história contada no romance encaixa-se na linha temporal dos quadrinhos ou se é algo que pode ser arquivado na categoria de realidade paralela, mas a linha narrativa central, que envolve o tal soldado que revive momentaneamente, um babirussa (ou porco-veado – se não sabe o que é, pesquise aí no Google, mas a imagem da capa do livro, que usei na presente crítica, é a de um crânio do bicho) imortal que persegue Unute há centenas e centenas de anos e um culto misterioso que parece ser uma bem bolada crítica ao culto da celebridade, algo tão comum nos dias de hoje, é de uma bizarrice só. No entanto, essa história é, talvez, a menos interessante dos três tipos de história que Miéville conta, já que ela parece pretensiosa demais e ao mesmo tempo lenta demais, sem real desenvolvimento para os personagens, inclusive o próprio protagonista e um tanto quanto cheia de tropos narrativos já cansados que, apesar dos twists estranhos como o mero uso de um babirussa claramente é, não enchem os olhos.

Os outros dois tipos de história é que chamam a atenção e enriquecem o universo de B. Em alguns capítulos, narrados em terceira pessoa no presente, vemos pessoas ao longo dos milênios que tiveram suas vidas de alguma forma conectadas à de Unute, seja um psiquiatra que muito provavelmente é o próprio Sigmund Freud que abre e fecha o livro, uma serva que B salva e que passa então a segui-lo, ou uma esposa que ele parece amar profundamente. Em outros capítulos, narrados na rara segunda pessoa, vemos relatos e pensamentos do próprio Unute sobre ele mesmo. Por vezes parece um pouco que Miéville está tentando “enrolar” o que poderia ser uma novela e transformar em uma obra mais longa, mas tenho para mim que a verdadeira riqueza está nesses enxertos que dão estofo à longa vida de 80 mil anos do protagonista que deseja mais do que qualquer coisa não exatamente morrer, mas sim ter a possibilidade de morrer, que é o que o faz ser um soldado do governo americano e um cobaia para experimentos tentando replicar suas características.

O Livro de Outro Lugar é uma leitura que provavelmente exigirá mais do que o leitor imagina se ele conhecer de onde vem o universo de BRZRKR (repare que o título da HQ sequer aparece no título original do livro, uma forma de distanciar e diferenciar as coisas) e ela é inicialmente bastante confusa mesmo para quem já leu os quadrinhos. Miéville demora a criar ritmo e, quando cria, intercala a história central com os “contos” que mencionei no parágrafo anterior, o que pode afastar muita gente. Mesmo assim, a insistência gera frutos e o maior desses frutos é notar que, nas mãos de um escritor ambicioso, que não tem receio de parecer para lá de pedante – e sim, por vezes ele parece – até um personagem tratado de maneira rasa em sua mídia original, pode ganhar um tratamento especial e diferenciado em outra.

O Livro de Outro Lugar (The Book of Elsewhere – EUA, 2024)
Autoria: Keanu Reeves, China Miéville
Editora: Del Rey Books
Data original de publicação: 23 de julho de 2024
Páginas: 352

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