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Crítica | Bruxas (2024)

Uma reflexão sobre a depressão pós-parto

por Luiz Santiago
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Distribuído e co-produzido pela MUBI, o documentário Bruxas, de Elizabeth Sankey, é uma obra profundamente pessoal e fortemente marcada por aspectos culturais que conectam representações cinematográficas de bruxas e as complexidades da saúde mental pós-parto. Desde o início, a cineasta associa sua própria experiência com a história da bruxaria no imaginário ocidental, criando uma película que é, ao mesmo tempo, íntima e universal. Acompanhando o estilo de narração particular, temos uma excelente curadoria imagética, com trechos de filmes tratando da bruxaria ou possessão feminina em obras de caráter histórico e também reflexivo, como Häxan (1922), Possessão (1981) e A Bruxa (2015), só para citar algumas dentre as dezenas mostradas. A direção revisita esses momentos icônicos do cinema para traçar paralelos entre mulheres marginalizadas no passado e as vivências internas e invisíveis das mães modernas. A justaposição de imagens de filmes e depoimentos reais dá à fita um caráter multifacetado, onde cada sequência reforça um discurso maior sobre poder, dor e resiliência feminina.

Ao examinar as bruxas como figuras que encarnam tanto a marginalização quanto o poder, Elizabeth Sankey levanta questões importantes sobre como a sociedade reage a mulheres que rompem com as normas. A maternidade, muitas vezes idealizada como o auge da experiência feminina, é desconstruída aqui com honestidade e crueza. A diretora revela como a saúde mental perinatal é, paradoxalmente, cercada por silêncio e julgamento, mesmo em uma era de avanços no discurso sobre saúde mental e valorização da mulher. O filme utiliza as bruxas para ilustrar a opressão que essas mulheres enfrentaram ao longo dos séculos, enquanto ecoa as mesmas dinâmicas de exclusão e controle impostas às que lutam com distúrbios diversos. Isso amplia as discussões sobre a contemporaneidade, mostrando como os estigmas históricos continuam a moldar percepções de uma sociedade que ainda se ilude sobre ser “respeitosa e inclusiva”.

O projeto estético do filme é um espetáculo à parte. Os ambientes criados pela diretora — quartos majoritariamente claros, mas misteriosos e evocativos de cenários macabros — não apenas reforçam a ligação com a bruxaria, mas também operam como uma metáfora para os estados emocionais explorados no longa. Essa revelação metalinguística, ao final, expõe a construção das cenas e a presença da família da diretora, humanizando ainda mais o filme e emprestando ao desfecho uma mensagem de esperança sem que fossem necessários discursos motivadores. A artista dá um sentido diferente para o projeto ao mostrar como essas representações foram cuidadosamente projetadas para abraçarem sua história de vida, criando no espectador uma sensação ainda mais realista para um problema atual que alude a um horror do passado. Nesse contexto, a direção de arte é mais do que um pano de fundo; ela é parte integrante da narrativa, que nos leva a questionar o que é real, o que é mito e o que é construção nas expectativas em torno do vínculo entre a mãe e o filho.

Reflete-se aí o próprio caos interno associado à depressão e ansiedade, ganhando uma divisão narrativa em capítulos e expandindo-se para algumas tramas paralelas, que tentam complementar a proposta. Quando a diretora retorna ao eixo principal de sua história (após um desvio exclusivamente focado na bruxaria, que bagunça a coesão do enredo), o impacto dos temas tratados volta a ser grande. O artifício narrativo das pequenas histórias extras exige paciência do espectador, mas recompensa com uma compreensão mais rica das camadas do filme, procurando fechar todas as janelas abertas.

Talvez um dos aspectos mais impactantes de Bruxas seja a maneira como Sankey aborda a sororidade específica para esta questão, ou seja, a rede de apoio entre mães que passaram pelo mesmo problema. Os depoimentos de algumas vítimas criam um senso de comunidade capaz de emocionar qualquer um. Vê-se que a diretora não se limita a expor dores individuais; ela também celebra a capacidade das mulheres de se unir para compartilhar conhecimento, curar e desafiar estigmas, expondo más práticas médicas e a postura que muitos têm de ignorar ou diminuir suas dores, seus incômodos, seus sintomas. Essa é uma mensagem que ressoa, no filme, como um feitiço de empoderamento coletivo, mostrando que o que antes era usado como símbolo de opressão, pode ser transformado em uma fonte de força e solidariedade.

Ao nos fornecer ferramentas para compreender alguns aspectos ásperos do estado ou qualidade de mãe, Bruxas se posiciona como um chamado iluminador para esses problemas, invocando a reflexão sobre como as narrativas históricas e culturais nos influenciam, e como é necessário dar voz às experiências marginalizadas para salvar vidas e sanar problemas que muita gente ignora. Elizabeth Sankey entrega uma obra inventiva e corajosa sobre o tema, mesclando arte e autobiografia com precisão histórica, informações médicas e muita emoção. Bruxas é uma convocação para enxergar o poder nas histórias que escolhemos contar (no nosso tempo e espaço), para as mãos que precisamos segurar no meio do caminho e nos laços que construímos enquanto o mundo ao redor julga e condena quem precisa de ajuda.

Bruxas (Witches) — Reino Unido, 2024
Direção: Elizabeth Sankey
Roteiro: Elizabeth Sankey
Elenco: Catherine Cho, Sophia Di Martino, David Emson, Marion Gibson, Trudi Seneviratne, Shema Tariq
Duração: 90 min.

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