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Crítica | Brokeback Mountain, de Annie Proulx

Um conto doloroso sobre personagens e suas trajetórias de amor acossadas pelo contexto opressor.

por Leonardo Campos
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Quase duas décadas depois da primeira sessão ao denso O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee, lançado em 2006, as minhas memórias ainda são intensas diante das lembranças sobre beleza, dor, incerteza e solidão, mescladas a cada avanço dado pela narrativa de amor que envolvia duas improváveis criaturas, Ennis e Jack, figuras ficcionais que se apaixonam e atravessam uma longa história de desejos oprimidos pelo contexto social de onde estavam inseridos, isto é, uma tessitura social fincada nos aparatos da dominação masculina, tomando aqui de empréstimo o título de um dos livros do filósofo francês Pierre Bourdieu. Na época, sequer imaginava a existência do conto de Annie Proulx, narrativa literária que serviu como ponto de partida para aquela que era uma das histórias transformadas em roteiro, considerada difícil de ser filmada. O tempo mostrou que as apostas em torno desta tradução para o cinema estavam erradas e, o filme que tinha tudo para passar timidamente pelo circuito alternativo, acabou se tornando um sucesso de bilheteria e crítica. Foi alvo de polêmicas, debates, ainda apresentando, mesmo com todas as políticas públicas, reflexões em redes sociais e luta pela vivência democrática e cidadã, uma realidade atualíssima em nosso contexto contemporâneo, dominado pela homofobia, discursos extremistas e constante hipocrisia.

O desenvolvimento do conto lançado em capa dura, pela editora Intrínseca, aqui no Brasil, traz basicamente a mesma estrutura do filme. Há algumas modificações, óbvias, afinal, estamos falando de tradução entre suportes narrativos, com inserções e acréscimos entre um ponto e outro para tornar a história ainda mais politizada, pois a época era propícia para cutucar o governo Bush e uma emenda assinada que tratava da proibição de união entre homossexuais. Na história em questão, acompanhamos a jornada de Ennis, um homem pacato, introvertido, de poucas palavras e expressões. É por meio de sua perspectiva que o enredo do conto se desenvolve. A sensação é a de que acompanhamos a jornada de melancolia, desejos reprimidos e autoconhecimentos de ambos os personagens por meio do olhar múltiplo de Ennis: nalguns momentos, turvo, noutras passagens, consciente e vívido.

Ennis e Jack se conhecem enquanto procuravam por uma oportunidade de trabalho. Eles conseguem assumir o posto de um empreendedor pecuário. A missão é tomar conta do pasto, tendo em vista evitar a ação de predadores. Um fica na parte de baixo da região de Brokeback Mountain, o outro, numa cabana, na parte de cima. O ambiente geograficamente gélido e os dispositivos internos já predispostos ao processo de conexão colaboram com a união de ambos, algo que acontece por meio de um ato sexual abrupto, intenso, inicialmente sem sentimento além do desejo de penetração e gozo, seguindo para um relacionamento que atravessa décadas, com um deles apaixonado, querendo viver o amor que desabrochou, e o outro, contido, mas também cheio de amor, receoso das consequências dessa união.

Publicado em 1997, o conto de Annie Proulx é uma delicada história de amor. É lindíssima a maneira como a autora, em seu lugar de fala, consegue conduzir os sentimentos dos personagens. Com lirismo discreto, mas contundente em cada passagem dos homens que se amam, o enredo atravessa os anos entre 1963 e 1981, nos fazendo compreender o quanto as opressões diante do “amor entre iguais” ainda causa comoção e polêmica em 2024, ano de releitura deste conto que versa sobre diversos temas conectados aos relacionamentos humanos. Conflituosos, torcemos por um desfecho que sabemos ser impossível para o contexto no qual estão inseridos Ennis e Jack. Cada momento é enfrentado com muita força, engendrada de dentro destes corpos que lutam para encontrar a felicidade, mas esbarram nas limitações não apenas de suas crenças, mas também das pessoas que acabam entrando em suas vidas enquanto ambos vivenciam as suas incertezas.

Também presente na coletânea Curto Alcance, também lançada no Brasil, Brokeback Mountain é uma realista história de amor. Sem espaço para desfechos com encantos ou soluções mágicas. O que temos é dor. E soluços. Com um desenvolvimento que poderia muito bem cair no lugar comum, ou então, retratar o tema por meio de perigosos estereótipos, haja vista o lugar de fala de Annie Proulx, ao contrário, nós temos uma cuidadosa tessitura textual, onde se percebe que cada palavra foi calculadamente pensada pela escritora para evitar desvios que prejudicassem a poesia do que contemplamos. Diante da insalubridade do ambiente em que trabalham, a dupla de personagens protagonistas se descobre, atenuando crises, mas também encontrando respostas para sentimentos prévios ainda não devidamente compreendidos, estabelecidos para os dois enquanto vivem a experiência em Brokeback Mountain, um lugar inicialmente de instalação laboriosa, depois, reduto de amor, para mais adiante, se tornar o ponto onde Jack sonhava em ter as suas cinzas espalhadas, sinal de que ali foi o lugar mais significativo de sua trajetória. Olhares, gestos e outras maneiras de se comunicar, mais evidentes na versão cinematográfica, também ganham espaços sutis neste conto, uma obra-prima da literatura estadunidense contemporânea.

Brokeback Mountain (Estados Unidos, 1997)
Autoria: Annie Proulx
Editora: Intríseca
Tradução: Guilherme Addino
Páginas: 72

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