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Crítica | Breve Romance de Sonho, de Arthur Schnitzler

Uma trajetória subjetiva sobre desejos íntimos inspirada pela psicanálise freudiana.

por Leonardo Campos
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A relação entre a literatura e a psicanálise é muito complexa e intrincada, resultando em um terreno fértil para a produção de escritas literárias altamente subjetivas. Esse é o caso de Breve Romance de Sonho, do escritor vienense Arthur Schnitzler, uma jornada de 112 páginas na desafiadora tradução de Sergio Tellaroli para a edição brasileira da Companhia de Bolso. A psicanálise, concebida por Sigmund Freud no início do século XX, explora os recessos da mente humana e os complexos mecanismos que moldam pensamentos, sentimentos e comportamentos. Com o foco na investigação dos impulsos inconscientes e dos conflitos psicológicos, a psicanálise lança luz sobre as profundezas da psique humana, revelando camadas de significados e interpretações que frequentemente escapam à consciência cotidiana. À medida que os escritores se apropriam desses conceitos e os entrelaçam em suas narrativas, surge uma aura de subjetividade que se fundamenta na própria natureza da mente humana e na diversidade de experiências individuais que compõem o tecido da existência humana. Mesmo com todas as críticas em relação aos seus postulados, as ressonâncias freudianas na escrita de Schnitzler deixam a tessitura textual sedutora, envolvente, misteriosa, tanto que Stanley Kubrick a levou para o cinema em seu último filme, De Olhos Bem Fechados, lançado em 1999.

Publicado em 1926, Breve Romance de Sonho retrata a vida de protagonistas mergulhados em desejos, sonhos e anseios da Viena burguesa do final do século XIX. A narrativa gira em torno de Fridolin, um médico respeitado, e sua esposa Albertina. Tudo começa quando ambos confessam mutuamente suas fantasias amorosas ao longo de uma noite, o que desencadeia uma série de eventos que desafiam seus casamentos e suas noções sobre amor e fidelidade. Com um mote simples, mas diante de sua escrita subjetiva, Schnitzler explora de forma perspicaz a fragilidade das relações humanas, a dualidade entre desejo e realidade, enquanto questiona o papel do acaso e do destino na vida das personagens. Com diálogos intensos e introspectivos para revelar as complexidades da humanas dessas figuras sociais aparentemente tranquilas em suas existências confortáveis, o romance se desenvolve expondo as contradições entre o que se almeja e o que se concretiza na vida cotidiana. Marcada pela atmosfera onírica e enigmática, onde a linha entre a realidade e a imaginação se torna tênue, é uma leitura que nos leva a refletir sobre nossos próprios desejos e ilusões. No geral, uma densa sessão de terapia, principalmente para quem consegue se identificar com as situações estabelecidas, como quem vos escreve.

Dentre as temáticas debatidas pelo livro, temos o desejo e sexualidade como elementos centrais na narrativa, perspectiva que examina os impulsos inconscientes dos personagens. Há também um questionamento da moralidade tradicional e os padrões sociais vigentes, destacando os conflitos internos dos personagens entre desejo e dever, uma abordagem literária clássica que dialoga com o estabelecimento de uma constante tensão entre a realidade e a fantasia, com eventos oníricos que desafiam a percepção usual dos personagens e dos leitores. Ler o romance, por sinal, não é uma tarefa das mais fáceis. A carga subjetiva e o desenvolvimento do tempo narrativo apresentam um panorama de idas e vindas para nós, leitores do contemporâneo, costumeiramente desafiados pelas interrupções de uma existência barulhenta em todos os aspectos possíveis. Confesso, por aqui, que a entrega ao romance veio da curiosidade do processo de tradução intersemiótica de Kubrick no filme de 1999, protagonizado por Tom Cruise e Nicole Kidman. Não fosse isso, talvez o clássico de Schnitzler ficasse para “outro” momento.

Ademais, em Breve Romance de Sonho, temos nos segredos e confissões como elementos importantes para a condução dos personagens em suas batalhas internas quando precisam lidar com seus próprios segredos íntimos. É praticamente um confessionário de figuras ficcionais para nós, leitores voyeurs. Schnitzler é assertivo ao retratar questões sobre identidade e autoconhecimento, pois constantemente, os personagens buscam entender a si mesmos através de suas experiências e sonhos, explorando questões de identidade e autoconhecimento. A complexidade das relações conjugais, recorrente, é diluída com foco nas dinâmicas de poder, fidelidade e intimidade entre os cônjuges. A narrativa também faz uma crítica à vida burguesa e ao conformismo, com passagens discretas que nos permite interpretar que as convenções sociais sufocam os verdadeiros desejos e impulsos humanos. Há também um enigmático jogo de temporalidade e eterno retorno, terminologias específicas da teoria da literatura, onde as noções de tempo e repetição são exploradas, com eventos que sugerem um ciclo eterno de desejos e frustrações, confluindo numa exposição poética sobre a morte e a transitoriedade da vida, desenhada de maneira significativa no romance que flerta com ponderações sobre finitude e o propósito da existência humana.

Não é fácil de ser lido, mas é uma experiência de leitura que merece ser vivida? Vai encarar, caro leitor?

Breve Romance de Sonho (Traumnovelle) — Áustria, 1926
Autor: Arthur Schnitzler
Tradução: Sergio Tellaroli
Editora: Companhia de Bolso
112 páginas

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