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Crítica | Border (Gräns)

por Ritter Fan
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Border é uma excelente surpresa, especialmente para quem mergulhar no filme sem saber absolutamente nada do que ele trata, como foi o caso comigo. Não que ele não funcione para quem já conhece a premissa ou mesmo alguns detalhes, pois sem dúvida funciona, mas ele traz uma sensação de deslumbramento que só a ignorância completa permite o aproveitamento máximo. Com base nisso, a crítica que segue não abordará spoiler algum, por mais insignificante que seja, o que exigirá um pouco de malabarismo textual, mas, mesmo assim, é bem mais recomendável assistir antes à obra escandinava (Suécia e Dinamarca) do iraniano Ali Abbasi, em seu segundo longa e, depois, voltar aqui.

Começando muito lentamente e completamente low profile, a fita nos apresenta à guarda de fronteira Tina (Eva Melander) que tem duas características muito marcantes: ela é muito feia e tem um olfato apuradíssimo, capaz de até mesmo perceber os sentimentos das pessoas. Isso a torna excelente em sua profissão, já que ela é capaz de detectar quaisquer produtos ilegais que viajantes desejem contrabandear para a Suécia. Depois de estabelecer essas suas duas características de maneira orgânica, o roteiro de Abbasi e Isabella Eklöf, escrito a partir de roteiro inicial de John Ajvide Lindqvist, também autor do conto que dá base ao filme (e, famosamente, de Deixa Ela Entrar, que ganhou duas adaptações cinematográficas primorosas), introduz Vore (Eero Milonoff), um homem que estranhamente se parece muito com Tina. Um relacionamento hesitante entre os dois começa a partir daí, com uma trama envolvendo pornografia infantil – detectada por Tina em outro viajante – colorindo a narrativa de maneira imprevisível.

Essa, porém, é a superfície apenas e o filme vai ficando sensivelmente mais bizarro e até repugnante, não seria errado afirmar, na medida em que progride com uma cadência que não deixa a narrativa esfriar ou criar barriga. Claro que o mistério e o inusitado das situações que se colocam diante de nossos olhos – de perguntas aparentemente triviais como “porque Vore carrega minhocas vivas em sua mala?” até o porquê de ele e Tina serem parecidos – ajuda na imersão do espectador, ainda que a dupla principal seja visualmente muito desagradável. Mas essa parece ser a marca das criações de Lindqvist, já que a pequena Eli, de Deixa Ela Entrar, não é uma personagem típica, daquelas imaginadas para aquecer corações.

No entanto – e isso pode parecer um clichê, mas, para mim, bem construído – Tina tem uma evidente beleza interior, já que ela parece extremamente generosa e preocupada com todos ao seu redor, inclusive o pai que vive em uma casa de repouso e o amigo que divide a casa com ela, além do casal de vizinhos. E, como se isso não bastasse, ela tem uma conexão lírica com a natureza, algo muito bem representado pelo lugar simples e afastado onde mora, cercado de verde pujante e uma fauna sempre presente. É desse clichê que Abbasi extrapola a obra para outros comentários críticos, notadamente o bullying, o preconceito lato sensu, os ditames da sociedade que nos obrigam a seguir determinadas regras mesmo que elas batam de frente com nossa natureza e, acima de tudo isso, a maneira com que cada um de nós se adapta – ou não – ao que somos e passamos a viver em paz ou em constante conflito com isso, além de nossa capacidade, muitas vezes não exercitada, de literalmente vencer nossa própria natureza.

Todos esses elementos, de maneira ampla discutindo a natureza do ser humano e nossa tendência para a destruição (quem são os monstros, no final das contas?), perpassam constantemente a história sem que os assuntos ganhem abordagem de sermão paroquial ou de lição de moral. É isso que torna Border um filme que vai além dos seus segredos, pois, por mais interessantes que sejam, poderiam facilmente cair no vazio, sem ressonar com o espectador. Ao usar o mistério não como artifício narrativo que se torna o único ponto de atenção e sim como parte de um todo único e coeso, Ali Abbasi entrega um filme que transita entre gêneros e facilmente ultrapassa a desconexão inicial que porventura sintamos em relação à dupla protagonista. Há uma conveniência narrativa ao final, além da aceleração da resolução, mas não é nada que retire o brilho do que é apresentado.

Mantendo uma paleta de cores fria, a fotografia de Nadim Carlsen é funcional, refletindo não só a ambientação natural do local onde se passa a obra, como também o estado de espírito de Tina. E enganam-se quem achar que as cores frias fazem de Tina uma pessoa triste. O efeito é justamente o oposto aqui, pois Melander é cuidadosa em sua magnífica interpretação da personagem, transmitindo, mesmo em seu semblante sério, uma espécie de vitalidade e amor à vida que raramente vemos por aí. E olha que a atriz – assim como Milonoff – trabalha embaixo de pesada maquiagem facial e corporal, com próteses dentárias e penteados que, em circunstâncias normais poderiam apagar as feições originais, mas que, aqui, resultam em um conjunto de cair o queixo. Quem não conhece as aparências originais dos dois atores precisa pesquisar na internet para começar a perceber o trabalho hercúleo que a equipe de maquiagem e penteado fez aqui e o sofrimento de Melander e Milonoff tendo que passar quatro horas por dia só nesse processo.

Border começa simples e devagar, construindo seus personagens com tranquilidade e cadência, algo que vai em um crescendo inesperado com surpresas a cada esquina e diversos sub-textos organicamente abordados em uma narrativa expansiva. Isso e mais um elenco de gabarito transformam essa quase que completamente ignorada obra sueca em um dos filmes mais diferentes dos últimos anos e um dos melhores de 2018.

Border (Gräns, Suécia/Dinamarca – 2018)
Direção: Ali Abbasi
Roteiro: Ali Abbasi, Isabella Eklöf, John Ajvide Lindqvist (baseado em conto de John Ajvide Lindqvist)
Elenco: Eva Melander, Eero Milonoff, Sten Ljunggren, Jörgen Thorsson, Viktor Åkerblom, Rakel Wärmländer, Ann Petrén, Kjell Wilhelmsen, Matti Boustedt
Duração: 110 min.

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