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Crítica | Bojeffries – A Saga

A Família Addams de Alan Moore.

por Ritter Fan
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Mesmo quando escreve histórias sérias e, francamente, revolucionárias nos quadrinhos, Alan Moore não esconde seu ar debochado, sua língua (ou melhor, seus dedos) ferina e sua sagacidade em criar fenomenais versões da realidade na arte sequencial. Quando, então, ele arregaça as mangas para realmente fazer humor, aí é que ele solta completamente os freios dessa sua característica e simplesmente não para mais, mesmo que, por vezes, crie obras um tanto quanto herméticas para quem não vive na Inglaterra ou conhece bem os meandros da sociedade britânica. Isso é visível já em seus primórdios, como em Maxwell, o Gato Mágico, que ele publicou em formato de tiras de jornal entre 1979 e 1986 e, em Bojeffries – A Saga, ele transfere essa abordagem para criar sua própria versão de A Família Addams (que também nasceu nos quadrinhos) ou Os Monstros.

O título dessa HQ pode enganar. Trata-se, na verdade, de um compilado de curtas histórias que giram ao redor de uma mesma estranha família, mas que não são necessariamente conectadas e que definitivamente não formam uma “saga”, que foram publicadas por quatro editoras diferentes entre 1983 e 2013, com as três primeiras editoras – Quality Comics, Fantagraphics e Atomeka Press – respondendo pelo período em que Bojjefries – A Saga saía com uma constância razoável, ou seja, até 1991. Depois do início da década de 90, Moore e Steve Parkhouse (responsável pela arte) só retornaram à sua criação em 2013, quando escreveram e ilustraram uma história inédita para ser inserida no compilado lançado em conjunto pela Top Shelf e Knockabout Comics que “encerra” a saga, por assim dizer, ainda que, estritamente falando, isso não fosse lá muito necessário, mas que acaba funcionando.

Nada em Bojjefries – A Saga segue exatamente um padrão. Moore e Parkhouse brincam em sua caixinha de areia a cada nova história que, em regra, tem algo como nove ou 10 páginas em preto e branco, normalmente focando em um membro da referida família Bojeffries. Mas, como não há um padrão, Moore e Parkhouse usam cores e também alteram o formato da narrativa, saindo de quadrinhos comuns para a “história ilustrada” (ou seja, quadros com narrativa em prosa embaixo), além de uma vez, logo no começo, usar como narrador e protagonista um hilário cobrador de alugueres que não faz parte da família e, outra vez, fazer o que, tempos depois, virou mania em séries de TV e seus “episódios musicais”, pois sim, há uma história toda musical apesar de a mídia dos quadrinhos obviamente não ser conducente à essa escolha. Em outras palavras, não há nenhum momento em que o leitor ficará acomodado, sabendo o que esperar durante a leitura desse inusitado e sensacional compilado, sendo até natural gostar de umas histórias e desgostar de outras (não foi meu caso, pois gostei de todas, ainda que em graus diferentes).

A família disfuncional é formada principalmente por um patriarca aparentemente comum, Jobremus Bojeffries, dois filhos, Ginda, uma ogra em aparência e atitude que se acha linda e maravilhosa, e Reth, um adulto-criança que parece mais velho do que o pai, além dos tios Raoul e Festus Zlüdotny, o primeiro um lobisomem e, o segundo, um vampiro. Há outros que aparecem – ou não – com menos frequência, mas que “colorem” a ambientação que Moore e Parkhouse, com a história do coletor de alugueis da prefeitura, algo bem britânico, já estabelecendo a “britanicidade” da narrativa que é mantida constantemente ao longo das demais, com comentários socioeconômicos satíricos e debochados, além de bem específicos sendo usados para dar vida aos personagens centrais e àqueles com quem eles se relacionam, notadamente Raoul por ser aparentemente o único que tem um trabalho fora de casa, mesmo que isso o leve à transformações licantrópicas bem públicas.

O motel central é, apenas, o cotidiano de Northampton sob as lentes de uma família que, mesmo com todas as suas bizarrices, espelha uma típica família de classe média britânica, seja na forma como ela cuida da casa, como trabalha, como se diverte e como sai de férias. É um microcosmo de pegada sobrenatural que Moore desenrola com sua verve ácida, sua mágica com diálogos por vezes ininteligíveis em razão do uso de dialetos e sotaques locais (e também não locais como são os caso de Raoul e Festus, o primeiro razoavelmente compreensível como alguém que parece ter vindo da Escandinávia e o segundo completamente incompreensível como alguém que parece ter vindo do Leste Europeu) que, no conjunto, formam a variedade étnica do país.

A arte de Parkhouse é uma absoluta delícia. Não só ele consegue criar personagens estranhos – sejam eles sobrenaturais ou não – em um estilo fortemente caricatural que parece ser inspirado por Robert Crumb, como ele imprime uma enlouquecedora quantidade de detalhes em cada quadro que vão desde referências mil a diversas fontes até o puro e simples preenchimento lógico de espaço de maneira que lembra à de Ian Gibson em A Balada de Halo Jones, mas de uma maneira que, diria, é mais natural e prazerosa. Sua arte é uma daquelas que exige duas leituras, a primeira normal, apreciando texto e arte e uma segunda focada exclusivamente em seu trabalho gráfico, para apreciar cada detalhe do que ele coloca em cada página e cada quadro.

Bojeffries – A Saga, além de ser interessante por seus próprios méritos, ainda é um exemplo raro de uma obra que antecede e ao mesmo tempo sucede o sucesso de seu roteirista e que mostra que Alan Moore é sempre Alan Moore, ou seja, alguém que tem seu norte e dele não se desvia a troco de absolutamente nada, mesmo que, como quem não quer nada, no meio do caminho entre uma história e outra de sua família monstro, ele tenha simplesmente alterado a forma como quadrinhos são escritos e lançados. Ou seja, monstro mesmo é Alan Moore!

Bojeffries – A Saga (The Bojeffries Saga – Reino Unido, 1983 a 1991 e 2013)
Roteiro: Alan Moore
Arte: Steve Parkhouse
Editoras originais: Quality Comics (Warrior), Fantagraphics (Dalgoda), Atomeka Press (A1), Top Shelf e Knockabout Comics (compilado com história original extra)
Datas originais de publicação: agosto e outubro de 1983 (Warrior); junho e julho de 1984 (Warrior); abril de 1986 (Dalgoda); maio e setembro de 1989 (A1); fevereiro e abril e 1990 (A1); fevereiro de 1991 (A1 True Life Bikini Confidential); 2013 (Top Shelf e Knockabout Comics); compilados por Tundra Press (1992) e Top Shelf e Knockabout Comics (2013)
Editora no Brasil: Editora Devir
Data de publicação no Brasil: 15 de junho de 2020
Páginas: 96

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