“Is this the real life? Is this just fantasy?”
Quando Freddie Mercury, interpretado por Rami Malek, é mostrado escrevendo trechos de “Bohemian Rhapsody”, música compartilhada por milhões de pessoas que clamam a canção como sendo própria delas – em uma possessão natural ao caráter dessas obras de arte, as mais pessoais existentes -, o personagem se emociona com os caminhos percorridos por sua criatividade. Em qual momento da letra surge o choro? Por que exatamente, se é que existe qualquer exatamente? Bohemian Rhapsody, como produção cinematográfica, não precisava, nem deveria, explicar de forma didática os significados de cada um dos pedaços de uma misteriosa composição, que alcança, na sua parte lírica, os segmentos, aparentemente – até mesmo uma possibilidade, na verdade -, mais desconexos uns com os outros. “Quem é esse Galileo?”, questiona um dos integrantes da banda, em situação engraçada. A grande questão é carregar os espectadores, emocionalmente, para uma ocasião como essa, do choro coberto de sentimento, porque compreendemos as questões que mais infeccionam o cotidiano do vocalista, porém, não somos imersos completamente e verdadeiramente por esses meandros de particularidades, envolvendo familiares, amigos e amores. O sentir é maior que o saber. Bohemian Rhapsody não é um longa-metragem sobre o Queen. Bohemian Rhapsody é uma cinebiografia do Freddie Mercury, contudo, norteada pelo epítome de uma estrada de belíssimas composições. “Bohemian Rhapsody”, no entanto, nunca é tocada por completo. Mais uma cinebiografia que come poeira?
Ao tornar-se um single, ainda permanecendo com seus seis minutos de duração originais, “Bohemian Rhapsody” some. O centro dessa história, a canção, detendo de distintas possibilidades de interpretação, não é explorada competentemente pelo responsável pela trilha sonora e os roteiristas. A criação da música, em contrapartida, é muito mais interessante do que a simbologia embutida nela – o dramático da obra sofre -, porque o roteiro, após inserir uma cena mais “abobalhada”, com o protagonista tocando piano, nos alarmando sobre o futuro de modo demasiadamente óbvio, consegue se desvencilhar desse ficcional, quase galhofa – a descrença em acreditar que certas coisas surgiram de certas maneiras, como “We Will Rock You” é apresentada aqui, quase pateticamente -, para tornar a “obra-prima”, como os membros a referenciam, uma realidade crível ao público. As sequências envolvendo o processo de produção de “Bohemian Rhapsody” são envolventes, por nos adentrar em minúcias criativas, sobre os interesses artísticos em pauta, que raramente acompanhamos em cinebiografias de músicos, preferindo comentar sobre suas vidas pessoais, do que suas carreiras, igualmente pessoais. O público compreende A Night at the Opera, onde “Bohemian Rhapsody” está inserido, como um álbum adorado por todo o quarteto musical. Brian May (Gwilym Lee), quando Freddie Mercury comenta que, em seguida ao seu incrível solo de guitarra, viria um segmento operático, apenas concorda com o vocalista, euforicamente. Quem desconfia do sucesso são os produtores.
O surgimento das divergências desenvolvem os grandes conflitos da obra. Bryan Singer, diretor conturbadamente envolvido no projeto, entretanto, se interessa pelo afastamento desse escopo de problemas criativos – o uso de sintetizadores, por exemplo -, tornando-os consequentes à vida pessoal do protagonista, uma ilustração da solidão, combatida, mas nunca distante dos seus entornos – os relacionamentos tóxicos começam a destruir os relacionamentos que não são tóxicos. Alguém pode lhe encontrar alguém para amar? As interações dos membros da banda, como uma família – palavra insistida em diversos momentos -, conseguem criar um considerável vínculo entre os personagens. Os verdadeiros amigos de um homem com poucos dessa espécie. O distanciamento, posteriormente, é suficientemente sentido – o protagonista em primeiro plano, durante o polêmico clipe de “I Want To Break Free”, enquanto os demais se divertem ao fundo. Já a união, antes, é abrangida para além das salas fechadas, mas nos palcos, espaço onde Freddie Mercury se aproximava de seus companheiros e os tornava parte de suas performances singulares. Ao mostrar apresentações do Queen durante turnês, as interações são evidentes, com Roger agradecendo certas cidades e, depois, Brian agradecendo outras cidades. As situações em que os artistas estão tomando decisões criativas, gravando em estúdio, são imensamente lúdicas. As que envolvem Bohemian Rhapsody, acima de tudo, são divertidíssimas – uma explosão artística gostosa de acompanhar. Os príncipes do universo unidos.
Uma construção de personagem, portanto, está presente na cinebiografia, mesmo que o roteiro e a direção sofram para impulsionar dramaticamente a jornada retratada, em uma costura emocional-narrativa verdadeiramente adequada. O texto, além disso, possui linhas de diálogo muito ruins – algumas poucas se sobrassem, com mais objetivo cômico. O caráter romântico, consequentemente, cambaleia, primeiramente, porque não acreditamos no imenso significado atribuído à Mary Austin (Lucy Boynton), o amor de uma vida. As trocas primeiras não convencem. Bohemian Rhapsody, porém, é um amontoado de algumas ótimas cenas, que não permitem o envolvimento se esvair por completo – o intérprete do protagonista também é outra causa para esse sentimento. O relacionamento amoroso do protagonista, por exemplo, conta com uma situação em que Freddie observa, pela janela, sua amada, ansiando desesperadamente pela sua presença, insinuando a solidão existente dentro do seu peito, que precisa preencher, sem a garota, com festas de arromba. “Love of My Life” ganha expressão – mais relevância que “Bohemian Rhapsody” até. A sua sexualidade, como algo inerente ao homem em questão, é notada na contraposição de uma troca de olhares com a música “Fat Bottomed Girls” sendo tocada ao fundo, ironicamente. A cinematografia da obra, paralelamente, é majestosa o suficiente para conseguir capturar belíssimos planos. Uma outra pequena loucura chamada amor surgirá, agora margeando um romance de corpo e alma, pois, como diria “Radio Ga Ga”, “alguém ainda te ama”.
A concepção desse seu amor original sofre diante de uma orientação diferente da que permitiria vivê-lo plenamente – a obra não entende essa questão, complexa, com perfeição. A contradição do filme com o espírito da canção homônima, ao mesmo tempo, está presente, porque Bohemian Rhapsody é uma cinebiografia extremamente casual, quando, para diferenciar-se das demais, poderia ter explorado intenções menos convencionais. A narrativa do longa-metragem insiste em uma linearidade perigosa, embora, inteligentemente, a obra comece e termine com a participação do Queen no Live Aid, um dos maiores concertos musicais da história. O significado existente no respectivo momento da trajetória da banda é enaltecido, portanto, nos carregando espiritualmente para uma imersão completa na conclusão da obra, sem interesse em mostrar o depois do que seria Freddie Mercury e os demais, mas interessado em enaltecer a jornada percorrida até então. As liberdades poéticas são tomadas durante o enredo, criando uma resolução harmônica. Bohemian Rhapsody é sobre vida. As cenas dos concertos são contagiantes, porque Freddie Mercury era contagiante e Rami Malek, como o personagem, assume monstruosamente o papel, nos transportando às emoções e aos significados que o roteiro, em maior escala, e a direção, em menor, não conseguem evidenciar. Rami Malek, nesse papel que lhe foi conferido, é melhor que Bohemian Rhapsody, permitindo sentimentos que não existem integralmente, distante de uma mistura de forças cinematográficas atuando em conjunto. O show, com ele, continua para sempre.
Bohemian Rhapsody – EUA/Reino Unido, 2018
Direção: Bryan Singer
Roteiro: Anthony McCarten
Elenco: Rami Malek, Lucy Boynton, Gwilym Lee, Ben Hardy, Joseph Mazzello, Aidan Gillen, Tom Hollander, Mike Myers, Aaron McCusker, Dermot Murphy
Duração: 134 min.