“Eu não sou tão nobre para arriscar a minha vida por estranhos… ou tão baixo para abandonar pessoas em perigo!”
Bleach é uma obra interessante. Diversas das características que, em Fullmetal Alchemist, adaptação do mangá/anime homônimo, diminuíram o peso de um longa-metragem extremamente indeciso, fracassando em conseguir espaço dentro de algum ambiente senão o do seu próprio nicho, são remanejadas em Bleach, uma obra mais auto-consciente das temáticas abordadas e tons abrangidos. Ambas as histórias possuem vertentes cômicas e dramáticas, mas Bleach consegue trabalha-las com maior domínio das questões inerentes a elas, por saber, antes de tudo, apresentá-las ao público. No caso desta adaptação da obra de Tite Kubo, criador da revista, a mitologia retratada, possibilitando um ar lúdico para o espectador apreciar a história, está inserida justamente nos grandes sustentáculos dessa narrativa: a morte da mãe de Ichigo Kurosaki (Sota Fukushi), acontecimento essencial para a jornada do protagonista ganhar forma, e o surgimento de Rukia Kuchiki (Hana Sugisaki), uma Ceifadora de Almas – shinigami, no original -, dando margem a uma menos pedante absorção do público pelo universo que já conhecia previamente ou não. Bleach revela, no final das contas, ser um filme muito mais correto do que aparentava ser, de início, mesmo que esteja longe de conseguir uma resolução, no texto, impecável. A alma presente dentro de seu escopo cinematográfico, contudo, garante o entretenimento e engajamento do espectador, até mesmo se divertindo mais do que o projeto merece.
Quando nos livramos da dicotomia entre o drama e a comédia, enxergamos a possibilidade de Bleach se sustentar longe das amarras, às vezes positivas, às vezes negativas, de ser uma obra meramente dramática ou meramente engraçada, permissões mais simplistas de um conteúdo cinematográfico. O que se origina é uma produção extremamente espirituosa, até mesmo envolvente em termos emocionais, permitindo uma amplitude de sensações. Já no início da fita, o longa-metragem nos guia para um momento do passado de Ichigo, enxergando uma garota no horizonte, que sua mãe, porém, não vê – um fantasma, portanto. Os contos envolvendo espíritos são extremamente conhecidos pelo público geral, permitindo este momento, sem a apresentação, ainda, de termos técnicos, ser um primeiro passo dentro da mitologia da franquia consideravelmente engajante. Comprovando esse entendimento, por parte dos realizadores, de como interessar um público, a obra avança anos no tempo, mostrando uma versão adolescente do protagonista, embalada por uma trilha sonora energética e grande descontração. O contraste entre o dramático, de antes, com o cômico, de agora, é amarrado por esse norte, envolvendo fantasmas, visto que, neste ponto bem primário da historia, a situação ainda referencia a capacidade de Ichigo em enxergar fantasmas, característica encarada com normalidade pelo personagem e pela sua família – pai e duas irmãs. O público imerge.
Ao introduzir, finalmente, os Ceifadores de Almas e os Hollows, duas nomenclaturas cruciais para o entendimento básico da mitologia apresentada nessa adaptação, Shinsuke Sato, diretor de Bleach, não distancia o espectador abruptamente da obra, o que poderia vir a acontecer, possivelmente, caso essa introdução fosse imediata, durante o momento inicial entre Ichigo e sua mãe. O público pode até mesmo se surpreender com o imenso ser digital – a computação gráfica não é das melhores -, mas o retorno a este mundo, após a distração, é rápido e preciso. O sobrenatural, então, ganha proporções gigantescas. Por conseguinte, a premissa definitiva é aberta, enquanto Rukia, uma Ceifadora de Almas, enfrentando um dos monstros do longa-metragem, está prestes a ser devorada, cedendo seus poderes, como última possibilidade, ao protagonista. A decisão, porém, gera sérias consequências para os dois, mostradas no decorrer bastante fluido da projeção. O verdadeiro impasse, contudo, é realmente os antagonistas e as complicações, que mostram-se confusas e problemáticas, por não darem, ao espectador, uma verdadeira ideia, senão pontualmente, do perigo que acomete a dupla de heróis. A conclusão da obra, então, resolvendo essa antagonização, mostra-se bagunçada, tratando o viés sobre sacrifício de um modo desengonçado. O sacrifício, no final das contas, não é muito diferente do plano inicial de Rukia, mostrando redundância narrativa.
A obra, em outra instância, também expõe muitos fatos relevantes através do texto, didaticamente, ainda mais em relação ao que tange o passado de Rukia, a Sociedade das Almas e os antagonistas, Renji Abrai (Taichi Saotome) e Byakuya Kuchiki (Miyavi), personagens maniqueístas que não mostram muita personalidade aqui, além da identidade visual bastante marcante. Os embates entre Ichigo e os dois, por outro lado, são ótimos, por mostrar, diferentemente do dito antes, uma real vontade dos personagens em assassinarem o herói, especialmente Renji, empunhando sua lâmina com ódio no olhar. Já Byakuya, completamente sereno, irrita, intencionalmente, o espectador. O herói não desiste. Desta forma, a obra consegue conciliar o passado do protagonista, o que ele representa, com o que os acontecimentos atuais moldaram em seu interior, nesta noção de sacrifício, entendida de maneira mais clara não no desenvolvimento da narrativa, mas na construção da relação, cheia de química e brigas, entre Ichigo e Rukia. Enquanto que a revelação coincidente do chefão final, o Grand Fisher, estar diretamente interligado com a existência de Ichigo não surte muito efeito, ainda mais quando, no final das contas, este personagem é deslocado de sua derradeira relevância, a ideia de relacionar duas personagens importantíssimas para Ichigo, em momentos distintos de sua vida, é válida e eficiente no sentimento atribuído a essa decisão, ao invés da coesão narrativa propriamente dita.
A definição do filme, portanto, como muito mais correto do que aparentava ser, comentada no início do texto, funciona justamente dentro desse escopo, porque não estamos diante do roteiro mais redondo da história das adaptações para live-action de obras japonesas, muito pelo contrário, mas olhando para uma produção concisa e coerente com as diferentes passagens que estuda, nessa intenção emocional presente nas interpretações, principalmente na de Hana Sugisaki, além da intenção cômica, apurada, que impulsiona o envolvimento do espectador. As digressões são pontuais, como o núcleo envolvendo um colega de classe de Ichigo, Uryu Ishida (Ryo Yoshizawa), porém, elas são facilmente compreendidas como expansões da mitologia, em uma grande novela samurai, estilosa e envolvente. Bleach é um longa-metragem que empolga o espectador para um possível futuro, porque até mesmo o cenário colegial, envolvendo os amigos mundanos de Ichigo, é interessante, com identidade promovida pelo humor, diante de piadas noticiando as tantas mortes do protagonista, e pela aura extremamente estilosa e misteriosa ao redor de Chad (Yu Koyanagi), amigo do grande herói dessa jornada. Mesmo os pontos completamente avulsos, como o interesse amoroso de Orihime Inoue (Erina Mano), têm uma relação suficiente com a jornada principal para que entendamos o não-progresso ou desenvolvimento dessas sub-tramas. O passado é retornado, mas estamos à espera da continuação desse exemplar surpreendente.
Bleach – Japão, 2018
Direção: Shinsuke Sato
Roteiro: Shinsuke Sato, Daisuke Habara, Tite Kubo
Elenco: Sota Fukushi, Hana Sugisaki, Ryo Yoshizawa, Erina Mano, Yu Koyanagi, Taichi Saotome, Miyavi, Seiichi Tanabe, Masami Nagasawa, Yosuke Eguchi
Duração: 108 min.