É muito raro o cinéfilo ter acesso a versões inacabadas e desautorizadas de filmes famosos. Não falo de versões diferentes de um mesmo filme sancionadas oficialmente, pois isso tornou-se um filão altamente rentável em Hollywood, notadamente na área de “versões estendidas” ou “versões do diretor” e outras ainda mais diferentes como a versão “em ordem cronológica” de Amnésia ou a mítica – pois nunca chegou a ser lançada, mas já foi projetada algumas vezes em ocasiões especiais – versão remixada e com material extra dos dois Kill Bill. Mas o processo criativo mesmo, aquele que nos deixa entrever o nascedouro das versões que chegaram originalmente ao cinema de obras queridas do público costumam ficar relegadas a documentários apenas que, por melhor que sejam, não repetem a experiência em si.
Mesmo considerando que Blade Runner é um dos filmes que mais ganhou versões diferentes ao longo dos anos – são cinco: as versões americana e internacional de cinema, a versão da TV americana, a Versão do Diretor e a Versão Final -, é importante lembrar que a ficção científica de Ridley Scott também acabou tendo sua versão “de trabalho” liberada oficialmente ao público em 2007, na edição especial americana em Blu-Ray, intitulada 5-Disc Complete Collector’s Edition. Esse Workprint é, portanto, o objeto exclusivo da presente crítica que abordará sua origem e diferenças em relação ao filme original e à Versão do Diretor, com a crítica da obra em si constante apenas do link respectivo das versões cinematográficas de 1982 (basta clicar no título do filme logo acima neste parágrafo).
Para começar, um pouquinho da história de como essa versão viu a luz do dia para felicidade dos cinéfilos.
O nascimento e o vazamento do Workprint
Como muitos sabem – e os que não sabem, descobrirão agora – é bastante comum que versões inacabadas de filmes sejam testadas diante de audiências para que o estúdio possa medir a reação do público e, eventualmente, fazer alterações para um maior grau de aceitação da obra antes de distribuí-la efetivamente aos cinemas. Assim, essa versão de teste foi exibida para públicos distintos – eles são escolhidos aleatoriamente dentro do perfil desejado – em Denver e Dallas, em março de 1982, pouco mais de três meses antes do lançamento previsto para 25 de junho. Essa versão de trabalho – ou Workprint – foi má recebida pelo público, que, em linhas gerais, sentiu-se confuso e perdido, além de aversão pela violência em tela e pelo final incerto.
Com os comentários avaliados (cada um que assiste, além de assinar um contrato de confidencialidade, ainda preenche um breve questionário que lida com suas impressões sobre o filme), a Warner, então, voltou à prancheta junto com Ridley Scott, o que resultou em um corte diferente da obra que foi a que efetivamente chegou as cinemas. Famosamente, a narração expositiva em off de Harrison Ford foi gravada – contra a vontade do ator – e incluída desde o começo da projeção (no Workprint ela só existe ao final, logo depois do monólogo de Roy Batty), a violência gráfica foi reduzida e um “final feliz” foi incluído, com Rick e Rachael aparentemente chegando a um local verdejante.
Mas, também famosamente, o Workprint foi a gênese das diversas versões futuras de Blade Runner quando ele ressurgiu desautorizadamente (ou, mais provavelmente, “sem querer, querendo”) em 1990 e 1991, respectivamente em Los Angeles e São Francisco, desta feita sendo recepcionado positivamente pelo público que teve acesso. Foi justamente essa reversão completa do “ânimo” do espectador que levou o estúdio a autorizar a produção da Versão do Diretor – que não foi feita por ele, mas sim apenas aprovada por Scott – e que, futuramente, viria a desaguar na Versão Final, essa sim com participação direta do diretor.
Com o interesse renovado pelo filme, a Warner acabou então incluindo uma versão limpa e remasterizada dentro do possível, já que o original já havia se degradado, no lançamento em vídeo doméstico mais completo que o filme teve até agora, em 2007. Assim, de maneira oficial, os cinéfilos puderam ter acesso a uma versão rara de um dos sci-fi modernos mais memoráveis.
Uma pergunta, porém, permanece: será que é realmente importante assistir o Workprint?
E então, eu preciso assistir o Workprint?
A resposta a essa pergunta depende, muito sinceramente, de seu grau de cinefilia e de seu amor por Blade Runner.
Como venho dizendo, o Workprint é um “pedaço de história cinematográfica” e só por isso um cinéfilo que se preze deveria ao menos ter curiosidade de correr atrás dele. Se esse cinéfilo for também um grande apreciador de Blade Runner, então a única resposta possível à pergunta é um efusivo “sim”.
No entanto, uma coisa deve ficar muito clara: o Workprint, exatamente por ter sido o catalisador das Versões do Diretor e Final, não traz grandes diferenças imediatadas para quem já as tiver assistido. Em sua grande maioria, o que o Workprint contém são takes alternativos de muitas sequências, mas nada que modifique ou acrescente ao material das versões seguintes, com apenas uma única exceção, relacionada com o voiceover final (ou melhor, o único) de Ford diante de Roy Batty.
Portanto, a escolha é entre ver uma versão intermediária que ajuda a entender o processo de produção cinematográfica ou simplesmente pular para as mais polidas e bem-acabadas versões seguintes.
Mas o que muda afinal de contas?
Essa é a pergunta mais importante de ser respondida. Como mencionei, como o Workprint deu origem às Versões do Diretor e Final, ela não traz novidades radicais. Claro que o público que assistiu essa cópia em 1990 ou 1991 percebeu diversas diferenças em relação à versão cinematográfica de 1982, notadamente a ausência quase completa da narração estilo noir de Ford, algo que chama atenção de qualquer um mais do que imediatamente.
No Workprint, essa narração é usada apenas uma vez, na sequência posterior ao famoso monólogo das “lágrimas na chuva” do último replicante Nexus-6 na Terra, que foi criado quase que de improviso por Rutger Hauer em um momento inspiradíssimo e histórico. Quando Roy Batty morre, vemos uma sequência mais longa da pomba branca voando e, então, voltamos para o telhado do prédio onde os dois estão, somente para descobrirmos, por intermédio da narração, que Deckard ficou por ali vendo Batty morrer por horas, até de manhã quando é finalmente resgatado por Gaff. A implicação disso é clara: Batty não morreu instantaneamente, mas sim lenta e agonizantemente por um bom tempo, mas que Deckard deixa evidente que foi algo apreciado pelo androide que queria mais do que tudo viver o máximo de tempo possível. É uma adição muito interessante e emocionante à narrativa, a mais relevante em todo o Workprint.
Mas, voltando ao início, o filme começa bruscamente, com uma logotipia para o nome de Ford e para o título bem diferente do que vimos no cinema, em letras garrafais vermelhas, seguida de um verbete de dicionário que define o que é “replicante”. Não há os intertítulos explicando sobre o status quo dos androides como no original ou versões posteriores. Isso e a ausência de narração em off arremessa o espectador diretamente na história, mas sem que ela seja mastigada, com a função de Rick Deckard sendo apenas aos poucos revelada.
Algumas tomadas clássicas inexistem aqui. Duas delas, a do close-up extremo em um olho vendo a cidade à noite e o plano geral clássico do edifício piramidal da Tyrell Corporation, fazem falta aos que se acostumaram com as demais versões do filme. Mas há um sobrevoo na cidade em que ouvimos a frequência do rádio da polícia “cantando” a chegada de Holden para fazer o teste Voight-Kampff em Leon, sequência que vemos imediatamente depois, mas com takes diferentes.
Essa audição da frequência do rádio da polícia, aliás, é uma constante no Workprint, mas de forma alguma com a função de substituir a narração em off. Basicamente, toda vez que vemos o interior de um spinner (o nome dos carros voadores) ouvimos um pouco do rádio. A única vez que há uma função narrativa para isso é logo após a sequência em que Roy Batty mata Elden Tyrell e caminha na direção de J.F. Sebastian. Descobrimos, por uma transmissão, aquilo que apenas suspeitávamos: Batty mata Sebastian em momento offscreen.
Ao longo de toda a projeção, são os takes diferentes das mesmas sequências que dão volume às “diferenças” entre o Workprint e as demais versões de Blade Runner. Alguns momentos mais longos, outros mais curtos, mas, no geral, o que vemos é quase que integralmente a mesma coisa e a verificação das diferenças só é realmente possível com a comparação lado-a-lado das versões, algo que fiz em relação ao Workprint e a Versão do Diretor, por serem as duas mais próximas.
Aliás, como todo mundo que conhece o filme sabe, a sequência em que Deckard sonha com unicórnios correndo na floresta somente existe na Versão do Diretor (e na Final). O Workprint, diferente do que se pode imaginar, não tem esse momento um tanto didático e que afasta a dúvida sobre a natureza de Deckard que Scott insistiu em inserir. Nesse aspecto, a cópia de trabalho consegue ser melhor do que as versões que a sucederam.
De resto, há que se destacar que a mixagem sonora do Workprint é ruim, pois abafa a voz em diversos momentos com o som ambiente, efetivamente tornando necessário aumentar o volume para ouvirmos alguns diálogos. A imagem também é menos do que perfeita, já que, como disse, o original degradou-se com o tempo, já que não é comum guardar com cuidado versões de teste de filmes.
Mas, em meio a esses problemas, alguns takes diferentes – além das alterações maiores que mencionei acima – se destacam:
- A conversa de Deckard com o egípcio fabricante de cobras artificiais é mais longa e mais interessante;
- Essa sequência é seguida por um momento em que Deckard pergunta a um policial onde fica a boate de Tuffy;
- A luta com Zhora é razoavelmente diferente e mais brutal;
- Quando Leon morre, nós vemos sua cabeça estourada, mas não o vemos cair junto com Deckard no chão. Ao contrário, há um corte para Rachael e a sequência continua nela;
- O assassinato de Elden Tyrell é muito mais brutal, violento e gráfico;
- A luta entre Pris e Deckard é também muito mais brutal, com uma Pris cada vez mais ensandecida toda vez que a câmera volta para ela;
- A sequência em que Batty, pela parede, puxa o braço de Deckard para quebrar seus dedos, é bem diferente, com takes mais longos e explícitos;
- A sequência em que vemos Deckard voltando para casa atrás de Rachael é bem mais curta;
- O final – com os dois indo em direção ao elevador – é mais curto também e mantém o viés incerto e razoavelmente pessimista das versões anteriores, sem o discrepante epílogo “verde” da versão do cinema;
- Não há créditos, apenas um abrupto “The End”.
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O Workprint de Blade Runner é um breve olhar dos bastidores do processo de produção cinematográfica de um grande estúdio. Agradará aos cinéfilos de plantão e será mais do mesmo para todos os demais que já tiverem visto as Versões do Direto e Final e confirmará o status de clássico cult que a obra merece.
Blade Runner, o Caçador de Androides – Workprint (Blade Runner – Workprint, EUA/Reino Unido/Hong Kong – 1982/1990/1991/2007)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Hampton Fancher, David Webb Peoples (baseado em romance de Philip K. Dick)
Elenco: Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, M. Emmet Walsh, William Sanderson, Brion James, Joanna Cassidy, James Hong, Morgan Paull, Kevin Thompson, John Edward Allen, Hy Pyke
Duração: 113 min.