Plaything é mais um dos estágios de análise que Black Mirror nos traz sobre a relação que temos com a tecnologia e também um olhar sobre a obsessão por simulações digitais e suas consequências na realidade — principalmente da juventude, cada vez mais privadas do contato social síncrono e plenamente entregue ao mundo virtual. Sob a batuta de David Slade e com o texto provocativo de Charlie Brooker, a trama acompanha Cameron, um jornalista de videogames vivido em sua fase adulta por um excelente Peter Capaldi, que topa ser cobaia de um jogo chamado Thronglets. Criado pelo excêntrico programador Colin Ritman (Will Poulter), o jogo propõe cuidar de criaturas digitais como se fossem os bichinhos virtuais (tamagotchi) dos anos 2000, mas logo se mostra uma representação da nossa própria humanidade, refletindo o quanto somos capazes de nos perder nas telas e dedicarmos mais tempo do que deveríamos a essas criações ou espaços digitais.
Ainda jovem (interpretado por Lewis Gribben) Cameron salta de uma curiosidade profissional para um apego doentio às criaturinhas do jogo, impulsionado por uma viagem de LSD que o faz acreditar que pode conversar com os Thronglets, como se fossem inteligentes, tivessem reais vontades e já tivessem extrapolado a fase de “meros códigos” para divertimento. A tensão cresce quando a realidade dele desmorona: após uma briga com Lump, um traficante que vive invadindo seu apartamento, Cameron comete um assassinato e tenta dar um jeito no corpo, enquanto sua mente já está em outro lugar, obcecada em “libertar” os seres digitais e provar para eles que a humanidade é digna de um contato, de confiança. A direção de Slade adota um ritmo claustrofóbico, quase como se estivéssemos presos na cabeça do protagonista, assistindo ao mundo real virar uma nota de rodapé diante do universo que ele constrói no computador, numa demonstração de como a tecnologia pode nos engolir inteiros.
Cheia de tons esverdeados e lavados, a direção de fotografia parece gritar que algo está podre na realidade de Cameron, apertando um cerco visual que já não é tão largo desde as primeiras cenas, deixando tudo ainda mais opressivo e desesperançado. O jogo Thronglets, que até virou um aplicativo de verdade lançado com essa 7ª Temporada da série, é um detalhe genial: ele não tem objetivos claros nem conflitos, apenas a tarefa de nutrir essas criaturas, o que joga luz sobre como a simplicidade pode ser um veneno sedutor e fazer com que as pessoas invistam tempo e criem conexões emocionais com bichinhos numa tela. É aí que a história descortina uma questão maior: o que acontece quando confundimos cuidado (mesmo num cenário lúdico) com controle; ou quando nossas criações começam a nos moldar mais do que o contrário?
Peter Capaldi (vulgo “o melhor Doutor“) é o coração disso tudo, carregando a trama nas costas com uma entrega que traz desespero, nojo, crueldade arrefecida e fascínio de um jeito que só ele sabe fazer. Seus longos monólogos, cheios de camadas, são janelas assustadoras para a alma de Cameron, mostrando um homem que vai se desfazendo enquanto tenta segurar algo que só existe em bits e bytes. Will Poulter, como Colin, traz um contraponto interessante, com aquele ar de gênio perturbado e amaldiçoado que já conhecemos de Bandersnatch, mas aqui ele é mais um catalisador do caos (e uma referência) do que o foco. O elenco coadjuvante dá o suporte necessário (embora eu tenha achado as caras e bocas de James Nelson-Joyce, o detetive, muito exageradas), mas é Capaldi quem transforma o episódio em algo que fica martelando na cabeça, livre para fazer com que seu personagem seja memorável e tenha o peso que o episódio exige.
Como de praxe, na série, somos forçados a encarar o quanto estamos dispostos a abrir mão de nós mesmos por um mundo artificial que nos deixa horas entretidos, paralisados, boquiabertos e alheios à realidade. O final, com Cameron tentando “reprogramar” a humanidade através de um sinal que pode ou não ter funcionado (embora eu faça parte do time que acredita que o plano deu certo), deixa um gosto de incerteza — e é essa ambiguidade que dá o toque especial à trama, que realmente não tem “nada de mais“, em termos de estrutura, mas que se coloca solidamente na lista de “distopias que já estão acontecendo em nossas vidas… e de forma ainda relativamente pior“. Num tempo em que muitos passam os dias grudados em telas de diferentes tamanhos, delegando pedaços da existência aos algoritmos, Plaything brinca (hehehe) com uma verdade incômoda: talvez o verdadeiro brinquedo sejamos nós, manipulados por algo que criamos para nos servir, mas que, no fim das contas, pode estar manipulando ou consumindo a nossa sanidade, nossa identidade e o que ainda nos resta de real.
Black Mirror – 7X04: Plaything (EUA, 10 de abril de 2025)
Direção: David Slade
Roteiro: Charlie Brooker
Elenco: Peter Capaldi, Lewis Gribben, James Nelson-Joyce, Michele Austin, Asim Chaudhry, Will Poulter, Kavé Niku, Ami Tredrea, Darryl Foster, Michael Taibi, Jay Simpson, Josh Finan, Will Mackay
Duração: 45 min.