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Crítica | Black Mirror – 7X03: Hotel Reverie

Onde está a felicidade?

por Luiz Santiago
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A magia do cinema, os muitos percalços do livre-arbítrio e a onda de refilmagens cinematográficas ganham vida em Hotel Reverie, um capítulo de Black Mirror que mergulha fundo na junção entre nostalgia e tecnologia. Aqui, acompanhamos Brandy Friday, uma estrela de Hollywood interpretada por Issa Rae, que se lança numa experiência imersiva ao participar de um remake high-tech de seu filme favorito, um clássico romântico de 1949. Forçada a seguir o roteiro à risca para voltar à realidade, ela vive uma jornada que mistura o charme melancólico dos velhos tempos com os dilemas modernos sobre originalidade, cópia, homenagem, plágio e capacidade de criar algo novo com a ajuda das máquinas. O episódio revisita o fascínio da série por dilemas éticos, mas o faz com um toque especial, explorando a reinvenção da arte e o risco humano, psicológico e emocional (nos bastidores, claro) dessa empreitada.

As camadas de ficção (cinema) e existência (realidade) são interligadas aqui, com Brandy assumindo o papel de Alex Palmer em uma narrativa que propõe uma nova dimensão técnica para a dramaturgia. Além de encenar, ela habita o personagem original e interage com os outros indivíduos dentro do filme, trazendo à tona ecos de A Rosa Púrpura do Cairo e, em outra medida, de O Show de Truman, mas com um tempero único: um romantismo inspirado em produções como Casablanca e Desencanto. A tecnologia Redream, que insere atores em filmes antigos e gera diálogos artificialmente, cutuca questões reais sobre autoria e o valor da criação humana em um mundo onde inteligências artificiais parecem assumir o comando de estúdios inteiros. Conectando-se a debates sociais e atitudes empresariais recorrentes  — a exemplo da Netflix se autocriticando com uma ironia sutil e cínica —, o texto de Charlie Brooker pinta um retrato relativamente amargo de um cinema que tenta se reinventar sem perder a alma, mas que denota algo perdido: a capacidade dos novos tempos em gerar seus próprios clássicos, tendo que recorrer constantemente a ramakes, prequels, sequels, spin-offs e afins.

Para mim, foi um deleite essa costura com o visual leitoso dos anos 1940 e a contraparte com os detalhes futuristas que nunca deixam o público esquecer a artificialidade por trás da cortina. A fotografia de Philipp Haberlandt abraça o preto e branco com uma elegância que encanta, além de inserir toques digitais que mantêm o pé no presente. A música de Ariel Marx, por sua vez, embala a narrativa com melodias que pesam na emoção, especialmente quando Clara/Dorothy, vivida por Emma Corrin, cruza os limites de sua própria existência programada; ou quando toca a belíssima Clair de Lune ao piano. A interação entre as duas protagonistas é o coração do episódio: Brandy quer preencher seu vazio existencial fugindo para um lugar onde o amor é possível, enquanto Clara reflete o desejo de alguém criado por códigos e a possibilidade de ir além do script, demonstrando independência e consciência. Essa tensão entre o natural e o fabricado questiona o que nos torna humanos e pode levar o debate para caminhos ainda mais densos, como a representatividade nas artes e a relação entre criador (roteirista) e criatura (personagens).

Protocolar e estruturalmente voltado para um nicho muito específico de espectadores, este episódio acompanha os debates sobre os rumos da arte versus a tecnologia, mas também celebra as muitas camadas que o cinema representa e é capaz de tocar. Ao colocar lado a lado a era dourada de Hollywood e as ferramentas de hoje, o episódio brinca com o que realmente importa na arte: sua relevância no tempo, o afeto/ódio que nasce entre produção e público, e o conforto/alegria do espectador em se sentir salvo, ao menos por um tempo, num mundo de ilusões. Nessa espécie de “encerramento temático” de San Junipero, enquanto Brandy atravessa um universo de pixels, ficamos com a sensação de que a verdadeira história não está nas telas, mas nas pontes que ela constrói entre nós. Num tempo em que algoritmos ditam tantos passos, Hotel Reverie aposta no brilho humano perdido na tela, na capacidade de o espectador se apaixonar pela ficção e, assim, manter a arte viva.

Black Mirror – 7X03: Hotel Reverie (EUA, 10 de abril de 2025)
Direção: Haolu Wang
Roteiro: Charlie Brooker
Elenco: Issa Rae, Emma Corrin, Harriet Walter, Awkwafina, Enzo Cilenti, Elliot Barnes-Worrell, Natalia Kostrzewa, Rebecca Ozer, Stanley Weber, Farid Larbi, Waleed Hammad, Charlie Hiscock, Tessa Wong, Magnus Bruun, Danielle Vitalis, Elaine Claxton, Amro Mahmoud, Asheq Akhtar, Filiz Fairweather
Duração: 76 min.

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