Home TVEpisódio Crítica | Black Mirror – 7X02: Bête Noire

Crítica | Black Mirror – 7X02: Bête Noire

Qual das verdades é a verdadeira?

por Luiz Santiago
12,1K views

Compreensivelmente divisivo e instigante, este segundo episódio da 7ª Temporada de Black Mirror é um verdadeiro labirinto de manipulação psicológica, memórias distorcidas e inimigos internos, trazendo à tona conceitos como Efeito Mandela, bullying, gaslighting e o próprio “bête noire” — aquele algo ou alguém que carregamos como um temor visceral, e que, por isso, precisamos evitá-lo, nos prevenindo dele; o nosso verdadeiro “monstro nas sombras”. Na trama escrita por Charlie Brooker, todos esses fios se cruzam de maneira impactante, puxando-nos para o drama psicológico de Maria, uma pesquisadora de alimentos que vê seu mundo desmoronar diante da chegada de Verity, sua ex-colega de escola, numa narrativa que começa como um estudo de paranoia e vingança, para, como era esperado, terminar na estranheza da ficção científica.

Maria é vivida por Siena Kelly, que entrega cada nuance de angústia e desespero com uma naturalidade impressionante, sendo lentamente engolida por um ambiente onde suas palavras são distorcidas e sua credibilidade, esfarelada. Após algumas pistas que só entenderemos no final do episódio, a narrativa engata em um grupo focal, onde Maria apresenta uma barra de chocolate com missô, mas que é rejeitada com nojo, até que Verity, interpretada por uma Rosy McEwen de presença magnética, surgir e, com um comentário casual, virar o jogo. A partir daí, a vida de Maria entra em colapso: Verity se infiltra em seu trabalho, muda detalhes sutis da realidade, e as pessoas ao redor começam a tratar Maria com frases do tipo “para de gritar”, “você está estressada?”, “talvez você esteja lembrando errado”. É o gaslighting em sua forma mais pura, um veneno destilado que faz Maria questionar não só o que vê, mas quem ela é. A tensão cresce e o roteiro usa essas interações para construir um drama psicológico muito bem azeitado. O efeito Mandela entra em jogo quando percebemos que a realidade de Maria não é apenas questionada, mas reescrita, como se todos ao seu redor compartilhassem uma memória que ela nunca viveu.

Então, o roteiro dá uma guinada mais profunda, mergulhando nas cicatrizes do passado. Descobrimos que Maria e Verity têm uma história antiga, uma ferida aberta da infância. Maria, que agora se vê como vítima, foi, na verdade, a algoz, a mente por trás de rumores cruéis que marcaram Verity. Esse passado é o motor da vingança que move Verity, que agora, armada com um computador quântico e um pingente que manipula realidades, inverte o jogo. Aqui, o episódio abre uma janela para reflexões sobre trauma: o que cura a dor que carregamos desde crianças? A vingança, tão doce no imaginário, resolve ou apenas aprofunda o abismo? Verity, cujo nome ironicamente significa “verdade”, torna-se uma alteradora de realidades, mas não sem expor suas próprias fragilidades. A trama sugere que o sofrimento não é um privilégio de um lado só — as duas mulheres, à sua maneira, são prisioneiras de escolhas e vivências passadas, momentos que agora voltam para cobrar sua dívida.

Com a revelação do dispositivo de Verity, o tom muda e o episódio assume um risco que pode não agradar a todos. O pingente, conectado a supercomputadores quânticos, permite que ela reescreva linhas temporais, transformando suas palavras em verdades absolutas — um salto que leva a história para além do psicológico e a planta no terreno especulativo de Black Mirror., inclusive com uma abordagem sobre “a realidade do que se vê” que nos lembra de Demon 79, da temporada passada. Imagino que, para muitos espectadores, essa virada mine a força do drama humano, mas note ela também amplia o escopo da narrativa, conectando-se a ansiedades bem reais sobre um mundo onde a verdade é maleável, seja por algoritmos, desinformação ou pura vontade de indivíduos, grupos, corporações ou Estados. A direção de Toby Haynes, precisa e claustrofóbica ao adotar composições típicas do suspense, acompanha essa escalada com uma câmera que parece sufocar junto com Maria, enquanto as atuações de Kelly e McEwen sustentam cada reviravolta. O confronto final entre as duas mistura violência e revelação, desafiando interpretações fáceis: ao tomar o pingente e declarar-se “imperatriz do universo”, Maria está curada ou apenas perpetuando o ciclo?

Deixando um gosto agridoce até para quem gostou da proposta geral, como eu, Betê Noire é um convite a pensar sobre o que significa ter poder sobre a própria narrativa e o que acontece quando esse poder cai nas mãos de quem já foi ferido demais para usá-lo com sabedoria. Talvez Maria, naquele final ambíguo, tenha encontrado uma saída, reescrevendo sua história para se libertar… ou talvez ela tenha apenas vestido a máscara de Verity, tornando-se o monstro que sempre esteve latente dentro dela. É uma dança entre vítima e vilã que nos força a encarar a memória da culpa e as consequências de nossos atos a longo prazo. Num mundo onde a verdade e a mentira podem ser dobradas com um toque na tela, Betê Noire nos provoca sobre as possibilidades de vingança, e até que ponto iríamos se tivéssemos o poder de alterar a realidade. O monstro nas sombras, nesse caso, não está longe. Está dentro de nós, esperando apenas o gatilho certo para se revelar.

Black Mirror – 7X02: Bête Noire (EUA, 10 de abril de 2025)
Direção: Toby Haynes
Roteiro: Charlie Brooker
Elenco: Siena Kelly, Rosy McEwen, Michael Workeye, Hannah Griffiths, Ben Ashenden, Amber Grappy, Elena Sanz, Alice Brittain, Kieran Smith, Reba Ayi-Sobsa, Ben Bailey Smith, Ravi Aujla, Jonny Lavelle, Andy Apollo, Kwame Agyei
Duração: 50 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais