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Crítica | Black Mirror – 7X01: Common People

A extrapolação do "plus".

por Luiz Santiago
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Abrindo a 7ª Temporada de Black Mirror, Common People (Pessoas Comuns), nos arrasta para uma situação onde vida (e morte) são influenciadas por uma corporação e uma tecnologia predatórias, transformando a existência da personagem de Rashida Jones (Amanda), numa servidão ao consumo disfarçada de salvação médica. Após um tumor cerebral, Amanda tem parte de seu cérebro substituída por um implante conectado à nuvem. Todavia, sem a adesão a planos cada vez mais caros, sua rotina é invadida por propagandas, sono excessivo e desorientação, reduzindo-a a uma marionete tecnológica, incapaz de viver sem ser um outdoor ambulante… a não ser que pague os novos planos. A ideia de que a tecnologia pode preservar a essência de alguém e prolongar sua vida a um custo sem fim mira diretamente na comercialização da saúde, expondo como a dependência de sistemas caros e inacessíveis pode desumanizar até os mais básicos atos de existir, como vemos na vida de quem enfrenta tratamentos médicos intermináveis sob a lógica do lucro. A crítica contra a perda de autonomia é clara, aqui, mas o episódio já me parece real demais, pois a nossa sociedade já aceita, em doses menores, a invasão da privacidade em troca de supostas conveniências.

Assim que a Rivermind chega oferecendo salvação para Amanda, notamos a deterioração de sua relação com o marido. Mike, num esforço hercúleo e trágico, mergulha em expedientes extras e até na autoflagelação em um site de conteúdo mórbido para arrecadar fundos, uma escolha que, a longo prazo, culmina em sua demissão. A atuação de Chris O’Dowd é intensa, apresentando um homem que se consome na tentativa de resgatar uma esposa que, na prática, já não está mais lá — não como antes, pelo menos –; enquanto Rashida Jones cria uma Amanda cuja fragilidade crescente é pontuada por momentos de lucidez aterradora, percebendo a prisão em que se tornou sua própria mente, seu corpo, sua vida. Esse lado do progresso, em vez de libertar, constrói correntes invisíveis, especialmente para aqueles sem meios de escapar da lógica do capital… ou dos prazeres que o tal progresso oferece.

O episódio olha a exclusividade como motor de desigualdade e exploração financeira (ao menos para alguns grupos sociais), e podemos olhar para essa questão em diversas esferas da vida contemporânea, pois a tecnologia, os planos de melhoramento e toda a “neurose de VIP” que nos cerca separa as pessoas até mesmo no que diz respeito à sua dignidade e capacidade de viver, não apenas fazer coisas mecânicas e estafantes, dia após dia. O texto de Charlie Brooker e Bisha K. Ali mostra um mundo onde o acesso a direitos fundamentais, como a saúde ou a privacidade, é transformado em privilégio, cercando a pior situação possível envolvendo um “plano freemium”. Na direção, Ally Pankiw (mesma diretora de Joan Is Awful) usa esses contrastes para criar uma atmosfera sufocante, visualmente opressiva e doentia, como também nos sugere a direção de fotografia, com exceção de uma única sequência: aquela que abre o episódio. 

Infelizmente, o roteiro não explora como essas dinâmicas de exploração poderiam ser desafiadas — não uma resistência prática dos protagonistas, a uma investigação jornalística, a busca por um advogado ou mesmo a uma tentativa real de burlar o sistema, o que força o espectador a engolir escolhas narrativas que, embora funcionais para o todo, deixam um gosto de artificialidade em quem esperava um pouco mais de complexidade estrutural. Por outro lado, pode-se analisar que a escolha dos roteiristas por essa falta de alternativas reflete a sensação do cerco que sistemas opressivos impõem às pessoas, especialmente quando a tecnologia se torna um cabresto, guiando-as por um único caminho, sem possibilidade de mudança. Eis aí um reforço crítico à passividade induzida por corporações que monopolizam soluções que custam caro (em diversos níveis) e eliminam as escolhas das pessoas — algo que, historicamente, já vimos em contextos de exploração econômica e colonial, mas que aqui ganha um verniz futurista. 

Common People é um alerta cultural e pessimista sobre os perigos de entregar nossa humanidade a máquinas controladas por interesses privados. Por fechar as possibilidades de enfrentamento e por sua construção bastante passiva, é possível que um impacto maior tenha se perdido aqui, tornando o episódio mais contemplativo do que transformador. Mas a mensagem de que a tecnologia, sob o jugo de corporações gananciosas, pode converter a vida numa prisão de consumo, é transmitida. Especialmente quando pensamos em como já cedemos pedaços de nossa atenção, tempo de tela, dinheiro com assinaturas e liberdade de ação aos algoritmos e “planos premium” na vida real. O que resta quando a cura ou o bem-estar custam a nossa essência? Com tanta dependência tecnológica e com tantas ofertas VIP, não é tão fácil responder a esta pergunta. E talvez, por isso, este episódio seja tão cruel: sua proposta não é mais uma hipótese. Ela está entre nós. Ações aparentemente bobinhas e hilárias, como a febre das lives de NPC (lembram-se disso?), os exorbitantes planos de saúde ou os objetos, roupas e acessórios “do momento” que todo mundo precisa se matar para comprar, já obedecem a essa lógica. Ao cabo, resta-nos decidir, antes que seja tarde, quem realmente controla as nossas escolhas, os nossos gostos, as nossas opiniões. Ou será que já passamos deste ponto?

Black Mirror – 7X01: Common People (EUA, 10 de abril de 2025)
Direção: Ally Pankiw
Roteiro: Charlie Brooker, Bisha K. Ali
Elenco: Chris O’Dowd, Rashida Jones, Tracee Ellis Ross, Nicholas Cirillo, Donald Sales, Lucy Turnbull, Milana Wan, Sofia Hodsoni, Sabrina Jalees, Carolyn Taylor, Huxley Fisher, JP McInnis, Peter Hall, Flo Lawrence, Jennifer Khoe, Moheb Jindran, Glynis Davies
Duração: 50 min.

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