A quebra de expectativa em uma produção artística funciona basicamente como o lançamento de uma moeda para tirar a sorte. A possibilidade 50/50, nesse caso, se alinha ao fato de que, ou o espectador vai admirar a escolha do diretor e roteirista na quebra da expectativa criada… ou terá muita dificuldade para abraçar o jogo da mudança e lidar com a decepção. No caso de um episódio de Black Mirror que se passa parcialmente no espaço; portanto, numa proposta de ficção científica sólida e interessante, o público já cria toda uma linha de expectativas baseadas naquilo que a própria série vem entregando ao longo dos anos. É um show que explora o gênero e as muitas tecnologias por um ponto de vista incomum, sempre que possível, tornando o elemento sci-fi o grande gerador dramático e o centro das atenções. Mas não é isso que temos em Beyond the Sea.
Escrito por Charlie Brooker durante a pandemia de COVID19, este episódio tinha todos os ingredientes para se destacar como uma pérola em meio à lista de capítulos do show, mas não o faz. É importante, contudo, dizer que este não é um episódio ruim. Trata-se de um produto solidamente acima da média. Um produto que tem um aparato tecnológico colossal em mãos, mas que utiliza isso apenas como canal secundário para um melodrama trágico, passional, ritualístico e sanguinolento, com referências ao assassinato de Sharon Tate e ao embate de Dave versus HAL 9000 em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Em adição a isso, estamos falando de um episódio que cozinha em fogo baixo: é consideravelmente lento e desnecessariamente longo, o que acaba contribuindo para alguns de seus impasses de ritmo.
Numa linha do tempo alternativa da Terra, em 1969, os astronautas Cliff (Aaron Paul) e David (Josh Hartnett) estão em uma missão espacial de 6 anos, durante a qual habitam réplicas mecânicas de seus corpos na Terra para passar o tempo com suas esposas e filhos. Tudo vai bem, até que uma tragédia acontece e David fica preso no espaço, sem poder voltar para sua réplica na Terra. A apresentação dos elementos centrais do enredo é vagarosa e todo o primeiro bloco do episódio, até o ataque da seita de hippies, é a parte mais fraca que temos em Beyond the Sea. A partir daí, as coisas começam a acontecer em uma boa progressão, e a atuação de Aaron Paul ganha máximo destaque, interpretando “dois personagens” e sendo o ponto de partida para o conflito com David, cuja escala só cresce.
O componente frustrante do episódio surge com o crime passional, numa esfera de traição e dramas familiares, abocanhando o lado verdadeiramente importante, que é o da ficção científica. É verdade que os eventos finais são imensamente poderosos, e seus impactos fazem valer a pena muitas escolhas pouco aplaudíveis do diretor. Mas considerando que tudo termina justamente quando esse “grande e opressivo momento de convivência infernal entre os protagonistas” começa, não aproveitamos nada do resultado da longa construção. A ideia de colocar personagens no espaço e chocá-los aos acontecimentos fatídicos na Terra funcionaria melhor se a tecnologia e a vida no espaço fosse o centro das atenções, o que não é o caso aqui.
Ou seja, tudo o que temos de potencial e boas possibilidades só é parcialmente utilizado. Sim, a direção é muito boa, a trilha sonora e a construção da atmosfera no derradeiro bloco são incríveis, mas tudo isso chega tarde demais e simplesmente termina quando as coisas ficam realmente interessantes. O peso do isolamento, o desequilíbrio emocional e psicológico e a crueldade em descontrole são pontos discutidos, trazendo para o espectador uma reflexão necessária sobre a transformação pela qual passamos quando ficamos isolados e cercados por perdas, pela impossibilidade de seguir em frente e pela ausência de promessas de mudança a curto ou médio prazo. O que alguém em profunda dor e desespero é capaz de fazer para igualar as outras pessoas ao seu nível de sofrimento?
Black Mirror – 6X03: Beyond the Sea (Reino Unido, EUA, 15 de junho de 2023)
Direção: John Crowley
Roteiro: Charlie Brooker
Elenco: Aaron Paul, Josh Hartnett, Kate Mara, Auden Thornton, Rory Culkin, Daniel Bell, Billie Sturrock Kewish, Charlie Fidelski, Olen Gunn, Lydia Cherry, Marama Corlett, Siân Davis, Ioachim Ciobanu, Simon Markey, Marceline Hugot
Duração: 80 min.