Se tem um gênero/estilo de produção pelo qual tenho um eterno ranço, este é o true crime. A quase totalidade dos livros, filmes, séries e podcasts que consumi a respeito acabaram revelando grandes problemas de concepção estética, o que invariavelmente acabou caindo no terreno da ética, tornando tudo mais complicado. Os primeiros minutos de Loch Henry, porém, indicam a preocupação de Charlie Brooker para estruturar esse Universo (provavelmente o mesmo de The National Anthem) como algo que não usa unicamente o crime como espetáculo, como meio simplório de faturamento massivo, mas como uma análise cuidadosa do comportamento humano e da indústria de entretenimento diante dessas grandes tragédias, desses assassinatos horrendos e seus desdobramentos.
Davis (Samuel Blenkin) e sua namorada Pia (Myha’la Herrold) viajam até uma pequena e pouco povoada cidade da Escócia, onde a mãe de Davis ainda reside. O casal está produzindo um documentário sobre um habitante local que cuida para que ovos raros não sejam roubados; uma espécie de “vigilante da natureza“. A atmosfera é sugestivamente macabra, e Sam Miller dirige esses primeiros momentos do episódio com um cuidado imenso, sem deixar coisas fora do lugar e apresentando uma porção de coisas possivelmente estranhas, plantando a desconfiança no espectador. Por ser uma cidade com poucas pessoas, o isolamento deixa tudo ainda mais macabro e potencialmente perigoso, mas como não conseguimos vislumbrar nada de ameaçador em um documentário sobre um protetor de ovos raros, acabamos não entendendo de onde pode, de fato, vir o perigo.
O elenco deste episódio está de parabéns. Todas as interpretações aqui são marcantes, em especial a de Mônica Dolan, que interpreta a mãe de Davis. Ela usa com perfeição a máscara social de alguém responsável e amável, uma senhorinha que ainda sofre pela morte do marido e que não faz questão de esconder isso. Uma quebra na seriedade desse ambiente aparece também no elenco, através de Stuart, personagem de Daniel Portman, que serve como alívio cômico, mas não no sentido negativo que se possa atribuir a este termo. É com a ajuda dele, inclusive, que o casal protagonista consegue avançar na pesquisa sobre o assassinato que aconteceu naquela cidade, nos anos 1990, bem como informações sobre Iain Adair, o culpado por tudo.
A mudança de tom na narrativa e a surpresa que temos na parte final do episódio validam toda a construção até aquele momento. O roteiro explora bem o problema, apresenta uma crítica muito bem argumentada aos programas sobre crimes verdadeiros e se bifurca em dois caminhos. No primeiro deles, assume abertamente a contradição de fazer aquilo que critica. No segundo, explora aquilo que defende como abordagem correta para esse tipo de produção, o lado das vítimas, a versão íntima para além do show, do documentário que recebeu o BAFTA, da espetacularização da violência, do assassinato em série e de criminosos que ganham status de ídolo para um bom número de mentes doentias. A sequência final de Loch Henry, quando Davis reflete sobre o que aconteceu, é cheia de amargura e aponta para uma possibilidade macabra, que nunca sabemos se irá concretizar-se.
Na busca por encontrar um assassino, Davis perdeu tudo. A verdade, a investigação de um crime e o filme feito a respeito dos eventos destruiu a vida do diretor e lhe trouxe um imenso vazio emocional. Notem que, na premiação, ele não consegue sequer fingir. Ao contrário de sua mãe, não sabe usar máscaras sociais. No fim, a mente doente pelo espetáculo, quem verdadeiramente desejava os holofotes era ela, a assassina — e isso o documentário acabou lhe dando. Imagino que todos os espectadores imaginaram que ela iria escrever “forgive me” no bilhete de suicídio, mas o que se revela depois é a confirmação de que a sádica queria mesmo era fazer-se ver. Só não tinha coragem de arcar com as consequências sociais que esse horrendo espetáculo poderia lhe trazer. Clicou alguma coisa para vocês? Qualquer semelhança com os suicídios após atos de violência que vemos nos noticiários, de tempos em tempos, não é coincidência.
Black Mirror – 6X02: Loch Henry (Reino Unido, EUA, 15 de junho de 2023)
Direção: Sam Miller
Roteiro: Charlie Brooker
Elenco: Samuel Blenkin, Myha’la Herrold, Daniel Portman, John Hannah, Monica Dolan, Gregor Firth, Ellie White, Tom Crowhurst, Scott Mooney, Beth Robb Adams, Alisa Gashi, Kirsty Wark, Weruche Opia, Laura Cairns, Marcella Whittingdale, Clive Myrie, Richard Ayoade
Duração: 60 min.