Os termos de condições dos contratos que simplesmente “aceitamos” quando aderimos a qualquer aplicativo, voltam a aparecer como tormento num episódio bem interessante, desta feita, estreando a 6ª Temporada da badalada, reformulada e, convenhamos, ainda um pouco sem jeito, Black Mirror. Trazendo uma referência externa, há um episódio muito bom de Legends of Tomorrow chamado Terms of Service (2019), que aborda este exato mesmo tema, numa linha de humor ácido e caótico que faz a mesma crítica que o presente texto escrito por Charlie Brooker: nossa entrega despreocupada e cada vez maior de dados de navegação, imagens, vídeos, locais e áudios para as grandes corporações tecnológicas e inteligências artificiais. E não há [quase] nada que a gente possa fazer a respeito, caso queiramos ter uma vida razoavelmente bem integrada digitalmente.
Como de praxe, Black Mirror utiliza a inteligente metalinguagem para nos fazer navegar por labirintos tecnológicos e nos divertir amedrontadoramente com o inferno que se torna a vida de Joan (Annie Murphy, em uma interpretação muito boa), quando descobre que um famoso serviço de streaming está exibido uma série intitulada Joan Is Awful, baseada em sua vida, com ela sendo interpretada por Salma Hayek. A ideia é ótima e, ao menos até sua metade, é muito bem executada. A apresentação do bloco inicial e a maneira como as coisas vão sendo estruturadas a partir daí até nos lembra o encadeamento dramático que o próprio Charlie Brooker criou em Bandersnatch (2018), mas desta vez, aplicado ao conceito de “encenação em abismo“, com narrativas dentro de narrativas.
Até o início da interação entre Salma Hayek e Annie Murphy, o episódio conseguiu sustentar o seu suspense e segurar bem a história com novidades constantes: a comparação entre as realidades e o mistério por trás das filmagens, por mais inexplicável e não convincente que fosse, funcionava porque não tentava colocar sentido amplo em tudo, focando apenas na relação entre a Joan da realidade de Black Mirror e a Joan de Joan Is Awful. O clima de opressão e confinamento se destaca facilmente nessa fase, já que as escolhas da direção de Ally Pankiw para filmar em muitos ambientes fechados e com uma fotografia escura e cheia de contraste faz o serviço estético de claustrofobia. Joan está presa, em todas as realidades, sob diferentes pontos de vista. Os problemas do episódio surgem com a construção para explicar o mistério e encontrar a saída.
De minha parte, gostei das escolhas essenciais do roteiro, enquanto conceitos. O problema é que essas escolhas se tornaram irritantemente didáticas dos últimos 15 minutos de episódio, com o autor criando complexidade desnecessária para algo que poderia ser explicado com poucas palavras, menos exemplos e mais versões mostradas da mesma realidade. A decepção maior vem pelo mesmo caminho das revelações em romances policiais que apontam como “autor do crime” alguém que nunca tinha aparecido no livro até então. Brooker pegou três ideias de realidades ficcionais e/ou multiversos e tentou fazer uma sopa com elas, aproveitando o estilo de metanarrativa da série, mas tropeçou no didatismo bobinho dos diálogos finais e por apresentar um encerramento que parece se encaixar de maneira forçada ao todo.
Joan Is Awful brinca com as patifarias da própria Netflix com seus espectadores e funcionários e mira certeiramente em um problema sério, para o qual a maioria das pessoas não dá a mínima. A maneira de discutir isso coube bem a um capítulo de Black Mirror, mas infelizmente se perde na própria viagem. Às vezes, menos é mais. Para o que sobra de interessante, o texto acaba se tornando uma cartilha com coisas óbvias sendo repetidas nas últimas cenas. A despeito disso, o episódio tem muita coisa interessante, além de divertir e fazer pensar. Mesmo com a mudança de cara, Black Mirror ainda continua trazendo bom entretenimento. E como se não bastasse, um pouquinho mais de neurose para o nosso dia a dia… até que a gente se esqueça e saia mais uma vez clicando em “aceito todos os termos” sem ler uma única linha do que estamos aceitando.
Black Mirror – 6X01: Joan Is Awful (EUA, 15 de junho de 2023)
Direção: Ally Pankiw
Roteiro: Charlie Brooker
Elenco: Salma Hayek, Michael Cera, Ben Barnes, Rob Delaney, Annie Murphy, Himesh Patel, Avi Nash, Wunmi Mosaku, Lolly Adefope, Jared Goldstein, Jaboukie Young-White, Ayo Edebiri, Kayla Lorette, Leila Farzad, Danielle Vitalis
Duração: 60 min.