Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | Bioética, Frankenstein e a Aposta em Um Futuro Sustentável, de Leo Pessini e Christian Paul Barchfontaine

Crítica | Bioética, Frankenstein e a Aposta em Um Futuro Sustentável, de Leo Pessini e Christian Paul Barchfontaine

Apesar de apenas tangenciado pelos autores, livro de caráter científico traz análises pertinentes sobre o legado de Mary Shelley.

por Leonardo Campos
64 views

Não se engane pela capa. Bioética, Frankenstein e a Aposta em Um Futuro Sustentável traz o personagem de Mary Shelley, imortalizado na tradução clássica para o cinema, de 1931, em sua capa, mas o livro publicado pelos acadêmicos Leo Pessini e Christian Paul Barchfontaine está longe de ser uma análise aprofundada da narrativa literária em questão. Há um capítulo dedicado ao livro, mas as considerações apresentadas são surradas, abordagem que traz muito do que já foi lido e publicado sobre a biografia da autora, as curiosidades dos bastidores de composição do romance e algumas poucas linhas sobre a importância do personagem e de sua jornada para compreendermos a relação da humanidade com o fazer científico. Isso, por sua vez, não quer dizer que as 164 páginas sejam descartáveis, ao contrário, há interessantes reflexões sobre meio ambiente, desenvolvimento sustentável, promoção da saúde, aspectos morais e éticos na ciência, mas falta uma conexão mais assertiva com o livro. Há menções sobre o aniversário de 200 anos de Frankenstein em 2018, os setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), o aniversário do primeiro transplante de coração realizado no Brasil, pelo Dr. Euryclides de Jesus Zerbini, mas em linhas gerais, e com todo respeito aos renomados autores, há ilações entre narrativa ficcional e seus desdobramentos, com o contexto de datas científicas comemorativas que fogem da centralidade do leviano título da publicação.

Isso pode ser observado logo em suas primeiras páginas, reafirmado mais adiante, ao passo que os capítulos, diagramados pela Editora Loyola, avançam. Resta ao leitor, que investiu em um dos múltiplos estudos sobre Frankenstein, publicados em língua portuguesa assumir o livro como um guia de conhecimentos gerais e levar adiante uma leitura fascinante sobre os tópicos temáticos mencionados anteriormente, mas distantes do que sua capa, uma vitrine, nos leva a esperar. Além de sua introdução, Bioética, Frankenstein e a Aposta em Um Futuro Sustentável é uma publicação que nos apresenta quatro amplos capítulos, intitulados de A Saúde Planetária: Pessoas e Planeta (Nossa Responsabilidade Ética); Um Olhar Bioético da obra Frankenstein, de Mary Shelley; Em Tempos de Crise de Utopia: O Perigo da Retrotopia; e As Promessas da 4ª Revolução Industrial: Inquietações e Esperanças Para a Humanidade. São todos interessantes, dominados por extensas notas de rodapé para facilitar a compreensão de determinadas terminologias científicas. Como o foco na aquisição da leitura era a ampliação dos conhecimentos sobre o clássico de Mary Shelley, vou apresentar aqui considerações sobre bioética na obra.

Frankenstein, publicado pela primeira vez em 1818, é um romance que permanece tão relevante hoje quanto na época de sua concepção. Com numerosas traduções para o cinema e outros suportes semióticos, o livro não só é um clássico da literatura gótica, mas também um profundo estudo dos dilemas éticos e morais que surgem a partir da busca desenfreada do conhecimento e do poder sobre a vida e a morte. Sendo assim, a bioética, uma disciplina que examina as implicações éticas das biociências e da saúde, oferece direcionamentos para reflexões sobre o livro que tornou Shelley uma “imortal” da literatura. Um dos aspectos mais proeminentes do livro, destacados por Leo Pessini e Christian Paul Barchfontaine, é a irresponsabilidade do criador, Victor Frankenstein. Desde o início, ele é apresentado como um jovem ambicioso e determinado, cuja sede de conhecimento supera todos os limites. Ao descobrir os segredos da vida e da morte, o protagonista decide criar uma nova entidade, um ser humano a partir de partes de cadáveres. A empreitada audaciosa, por sua vez, não sai como planejado. Ao trazer uma vida não natural, ele rapidamente se defronta com as consequências de sua ação. Abandona sua criação, o que levanta uma questão central na bioética: qual é a responsabilidade do cientista em relação às suas criações? Há limites diante do “fazer científico”?

Teoricamente falando, a ética na ciência requer que os pesquisadores considerem não apenas os resultados de suas investigações, mas também as repercussões dessa ciência na sociedade e na vida dos seres que criam. Victor, ao se recusar a assumir a responsabilidade de educar e cuidar de sua criação, falha em um princípio bioético fundamental: a responsabilidade. O abandono do “monstro” leva a um ciclo de violência e destruição, evidenciando que a falta de cuidado e consideração pode resultar em tragédias que afetam não apenas o criador, mas também a sociedade como um todo. Essa reflexão foi extremamente pertinente no mundo moderno, ainda mais em nossa existência contemporânea, eras onde as inovações biotecnológicas, tal como a edição genética, exige responsabilidade por parte dos cientistas. Ademais, outro tema bioético crucial em Frankenstein é o conceito de criação sem limites. Victor Frankenstein desafia as leis da natureza ao tentar criar vida, o que levanta questionamentos sobre até onde a ciência deve trafegar diante da manipulação de suas descobertas. A bioética propõe normas e diretrizes que limitam a pesquisa científica com o objetivo de proteger a dignidade humana e o respeito à vida. Contudo, a impetuosidade de Victor nos mostra os perigos de operar fora dessas diretrizes.

Ao longo da narrativa, o monstro se torna um símbolo das consequências da intromissão humana nos limites naturais. Tudo se transforma em caos e o destino de todos os envolvidos é encontrar com o trágico. A criação da cientista que se sente Deus representa não só a busca pela imortalidade e pela superação da morte, mas também as implicações dessa busca em um contexto social. A bioética nos ensina que as descobertas científicas não devem ser feitas sem uma reflexão cuidadosa sobre suas possíveis consequências. O dilema da criação de vida artificial através da biotecnologia, como no caso das tecnologias de clonagem e manipulação genética, traz à tona as perguntas: o que significa ser humano? E até que ponto nós devemos pavimentar caminhos curiosos rumo ao processo de modificação da vida? Embora Victor tenha criado um ser com características humanas, ele é brutalmente rejeitado pela sociedade e por seu criador. Essa rejeição não é apenas física. Ela vai muito além, atingindo a essência dignidade. A maneira como o monstro é tratado levanta questões éticas sobre a aceitação e a marginalização de seres que diferem da norma. A bioética, nesse contexto, nos leva a considerar a dignidade intrínseca de todos os seres, independentemente de sua aparência ou origem.

O “monstro”, apesar de não ter tido uma infância normal ou o amor de um pai, demonstra sentimentos profundos como o amor, a solidão e a busca por aceitação. O fato de ser rejeitado por Victor e pela sociedade gera em sua existência um profundo ressentimento e tristeza, resultando em ações violentas. Isso nos leva a concluir que a falta de empatia e compreensão pode transformar seres supostamente inocentes em criaturas vingativas, levantando novamente a necessidade de compaixão e respeito nas interações humanas. A leitura de Frankenstein nos lembra que o conhecimento deve ser acompanhado de ponderação e responsabilidade. Temos visto casos em que inovações, mesmo que inicialmente prometedoras, resultaram em consequências indesejadas. A pandemia de COVID-19, por exemplo, trouxe à tona discussões éticas sobre a responsabilidade na pesquisa e desenvolvimento de vacinas, bem como desafios na distribuição equitativa dos recursos de saúde. Por isso o romance em tão atual. Seus desdobramentos levantam questões instigantes. Mary Shelley, ao escrever Frankenstein, não apenas criou um ícone da literatura gótica, mas também estabeleceu um alerta sobre as responsabilidades morais que acompanham a criação científica.

Mesmo que Bioética, Frankenstein e a Aposta em Um Futuro Sustentável não delineie essas questões abordadas por aqui com clareza, ao menos nos faz refletir sobre.

Bioética, Frankenstein e a Aposta em Um Futuro Sustentável (Brasil, 2018)
Autoria: Leo Pessini, Christian Paul Barchfontaine
Editora: Edições Loyola
Páginas: 164

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais