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Crítica | Bingo: O Rei das Manhãs

por Luiz Santiago
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Bingo: O Rei das Manhãs (2017) é o filme de estreia de Daniel Rezende na direção. Mas ele não é novo no cinema. Sua carreira como editor começou em 2002, em Cidade de Deus (indicado ao Oscar na categoria), e ele foi acumulando experiência e desafios ainda mais diversos ao longo dos anos, assinando a montagem de obras como Diários de Motocicleta (2004), Tropa de Elite (2007), A Árvore da Vida (2011) e RoboCop (2014). Tendo lido, em 2007, a reportagem O Palhaço de Deus, na Revista Piauí, onde a jornalista Raquel Freire Zangrandi trazia a vida de Arlindo Barreto, que passou de ator de filmes do gênero pornochanchada para um dos maiores fenômenos da TV brasileira, vivendo o Palhaço Bozo no SBT.

Tocado por um trecho da reportagem onde o filho de Barreto dizia “você é o único pai que brinca com todas as crianças, menos comigo“, Rezende percebeu que poderia colocar aquele homem e seu personagem um drama familiar embebido em doses de comédia, mostrando o “detrás das câmeras” da TV brasileira nos anos 80, a década da programação infantil (ou melhor, da programação em geral) mais legal da nossa História. O projeto começou a ser discutido com o ator Wagner Moura em 2008, e seria ele a assumir o papel principal. Sem pressa, estando cada um com projetos pessoais em andamento, a produção do longa sobre o Bozo de Arlindo Barreto só ganhou os holofotes em 2014. Um ano depois, Moura precisou se afastar do projeto, devido a sobrecarga de trabalho que tinha na série Narcos, da Netflix. Em sua saída, ele indicou um amigo para o papel: Vladimir Brichta. E esta certamente foi a melhor coisa que aconteceu na carreira do ator mineiro, que fez fama vivendo Enrico, na novela Kubanacan (2003 – 2004).

O roteiro de Luiz Bolognesi, em um trabalho muito melhor que o de outra cinebiografia da qual foi co-autor em 2016, Elis, molda com competência a trajetória de Arlindo Barreto (que na obra virou Augusto Mendes, o primeiro ator a interpretar o palhaço Bozo na TV brasileira), aproveitando o ensejo para colocar em cena a mãe do personagem, uma atriz e jurada de programa de calouros, Marta Mendes, vivida com bastante competência por Ana Lúcia Torre. A boa relação entre mãe e filho se reflete também na relação de Augusto com o seu primogênito, laço que conhecerá alguns espinhos quando o personagem iniciar a sua queda — um dos elementos dos filmes biográficos — antes da redenção, quando “encontra Jesus”. Este ponto final do texto, além de tratar de maneira muito rápida os eventos, força a questão religiosa de maneira não muito orgânica, atrapalhando a finalização. Esta, porém, foi a condição de Arlindo Barreto (que hoje é pastor evangélico) quando assinou o contrato cedendo os direitos para a adaptação livre de sua vida. Ele aceitou que o filme tomasse liberdades criativas no desenrolar dos fatos, mas impôs que a redenção à cristandade aparecesse como motor principal no final da película.

Além da mudança do nome do protagonista e, por questões de direitos autorais, do nome Bozo para Bingo, o roteiro ainda troca Xuxa por Lulu; SBT por TVP e Rede Globo por Mundial. Mas apesar da mudança dos nomes, a identidade, disputas por audiência e características da televisão tupiniquim são mantidas e garantem com louvor toda a graça da fita. Daniel Rezende mostra sua capacidade de segurar uma obra com uma faceta dramática e outra cômica, explorando um ambiente de bastidores artísticos e outro de conflitos pessoais, amorosos e familiares, tendo direito a cenas de mergulho na imaginação do personagem que são uma deliciosa viagem, colocadas em medida certa na obra.

Exceto por três coisas; a emaranhada forma de introdução do programa — a passagem das pornochanchadas para a TV possui algumas rusgas de organização textual, especialmente no período em que Augusto tenta convencer o gringo (caricatura divertida de Larry Harmon, o licenciador, mas não criador, do palhaço Bozo nos EUA, depois vendendo os direitos de exibição para outros países) –; a pressa seguida de uma base cristã forçada no roteiro, na parte final; e demorados planos gerais ou panorâmicas pela cidade para contextualizar os personagens, o longa é um presente nostálgico e quase politicamente incorreto de uma fase de nossa História do entretenimento. Nesta saga do palhaço desbocado, alcoólatra e viciado em cocaína, temos também algumas tragédias que marcam a sua mudança como pessoa e o louvável arco amoroso vivido entre ele e Lucia, a diretora do programa, interpretada pela sempre incrível Leandra Leal.

A criativa direção de arte de Cassio Amarante (Abril DespedaçadoXingu) dá ao cenário de gravação uma cara simples, mas cativante, mantendo-nos o tempo inteiro interessados no aspecto visual, algo elevado à máxima potência na criação dos interiores das casas de Augusto e Martha, cada um de uma geração diferente do show business e com elementos dessa indústria em casa. A fotografia, assinada por Lula Carvalho (Tropa de Elite 2Raul – O Início, o Fim e o MeioO Lobo atrás da Porta) é outro ponto que merece aplausos. A composição de luz para as cenas noturnas, a variação emocional dos personagens refletidas em suas casas (de tons marrons e alaranjados para verdes e beges) e o próprio ambiente de gravação, com diversas camadas de cor, luz e sombra são bons pilares estéticos da fita.

O filme tem muitos planos longos e planos-sequência, o que nos faz perceber a eficiência fotográfica em todo o movimentar da câmera, tendo como excelente arquiteto o diretor Daniel Rezende, que começa com o pé direito na direção, guiando com grande apuro o elenco (destaque absoluto para Vladimir Brichta, que dá um verdadeiro show dramatúrgico, interpretando um palhaço, um pai e um filho em estágios diferentes e com emoções, voz, olhares e expressões corporais distintas) e fazendo um dos mais incríveis planos do longa e do cinema brasileiro da mesma safra, executando uma lição aprendida com Michelangelo Antonioni em Profissão: Repórter (1975), maximizando-a para a viagem da câmera saindo pela janela de um apartamento, girando pela cidade, focando em um edifício e entrando por outra janela, mostrando a fase seguinte de Augusto, agora no hospital, uma maneira eficiente de se fazer uma elipse, além de realizá-impecavelmente.

Bingo já é um dos melhores personagens do cinema brasileiro e Daniel Rezende conseguiu estrear como diretor em uma obra de diversos tons e com uma temática biográfica que, apesar de todos os clichês do gênero, é bem dirigida e muito divertida. Espectadores de maior pudor certamente irão reclamar de Brichta “pagando bundinha”, desfilando de cueca pelos sets, ou dos seios e virilhas mostradas no filme, mas são reclamações vindas de mentes comprometidas. O que esperavam ser mostrado em um filme onde o protagonista vem da indústria das pornochanchadas? Decerto não alguém pudico, vestido com 118 camadas de roupa e falando em vocabulário machadiano para uma plateia de penitentes em jejum e oração, não é mesmo? Bingo é um filme sacana, como deveria ser. É bastante fiel em relação ao Brasil de “programação despirocada dos anos 80“, como deveria ser (afinal, que outra década colocaria Gretchen rebolando, com o mínimo de roupa, ao som de Conga Conga Conga, em um programa infantil?). Um novo clássico brasileiro surge. Nosso querido Bozo Bozinho Bozoca Nariz de Pipoca deve estar muito orgulhoso.

Bingo: O Rei das Manhãs (Brasil, 2017)
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Luiz Bolognesi
Elenco: Vladimir Brichta, Leandra Leal, Emanuelle Araújo, Raul Barreto, Pedro Bial, Ricardo Ciciliano, Soren Hellerup, Augusto Madeira, Cauã Martins, Domingos Montagner, Tainá Müller, Fernando Sampaio, Ana Lúcia Torre
Duração: 113 min.

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