Quando fala-se em Stephen King, pensamos em horror/terror. É praticamente inevitável nesse ponto da carreira do autor norte-americano de 73 anos que se tornou o maior nome do gênero atualmente, furando a bolha literária com suas dezenas de adaptações audiovisuais e tornando-se responsável por muitas histórias tenebrosas que rondam a cultura popular contemporânea. Mas, após o terror, a principal característica da escrita de King é, talvez, a própria literatura. Vários livros do romancista contêm escritores como protagonistas, como O Iluminado, Misery, Salem’, entre outros. King adora explorar a vida íntima e às vezes conturbada de escritores, tocando em assuntos e temas complicados como alcoolismo, bloqueio criativo e fãs fanáticos, até comumente traçando linhas autobiográficas com suas próprias experiências. Além disso, também existe um grande interesse do autor pelo processo da escrita; não só apenas profissional e artístico, mas também como um meio de libertação ou expiação.
Billy Summers, mais novo livro do prolífico “Rei do Terror”, segue apenas uma dessas características. Estamos diante de uma obra de ficção policial e thriller de máfia, se distanciando do sobrenatural que estamos acostumados com o autor – apesar de que nos últimos anos ele tem se tornado um ótimo e renomado romancista policial -, mas a literatura é novamente parte intrínseca da narrativa de King. A premissa é bem objetiva. Acompanhamos um ex-sniper do exército americano que se tornou assassino de aluguel, o personagem-titular Billy Summers, se envolver em um “último trabalho”. Ele foi contratado para matar um hitman que está encarcerado. Para esperar o momento certo do tiro, Billy deve se mudar para uma cidade pequena no sul dos EUA e viver uma vida dupla sob o disfarce de um escritor. Ironicamente, Billy ama literatura, e decide preencher seu tempo escrevendo a história da sua vida.
Assim, o que temos na primeira metade do livro é basicamente uma história dentro de uma história (dentro de outra história). Eu explico – sem spoilers. King, inicialmente, conta duas histórias no presente-narrativo: a perspectiva do assassino e sua vida fingida como escritor. Fazendo um ótimo contraste entre o lado mais pessoal de Billy, quando está sozinho no quarto em seus vários pensamentos e monólogos internos, com sua rotina suburbana entre churrascos, jogos de Monopoly e amizades com vizinhos, o autor utiliza algo em torno de 300 páginas para fazer um estudo psicológico do seu protagonista. É um bloco que pode ser moroso às vezes, mas com paciência e inteligência, King usa muito bem o período de normalidade na vida do seu típico anti-herói bonzinho – ele só mata “caras maus”! – para trabalhar temas batidos como redenção, culpa e trauma com certa profundidade e complexidade.
É, no entanto, a “terceira história” que preenche a lacuna final de um dos mais intrigantes e bem-desenvolvidos personagens de King. Estou falando do livro de Billy. Grande parte das páginas escritas pelo protagonista são pontualmente compartilhadas com o leitor. Dessa forma, a obra ganha uma curiosa estrutura, entre presente e passado, ora em primeira pessoa ora em terceira pessoa, em que a história de fundo é contada sem parar o avanço da história “atual”. Chega a ser assustador a facilidade com a qual a prosa de King transita entre essas histórias, se complementando e criando uma tremenda caracterização de Billy sem cair num didatismo ou até mesmo em uma forma cronológica. Até porque o passado de Billy não é estabelecido como um flashback propriamente dito, mas visto pelas palavras amadoras e coloquiais de um ser humano trágico encontrando na literatura uma forma de remição. Uma das mais bonitas homenagens de King à sua arte como um meio para ser sincero com seus sentimentos.
Dito isso, após o serviço (não contarei o resultado dele ou suas consequências), King dá uma virada completa em linguagem e tom narrativo. Virada esta completamente necessária, do meu ponto de vista, pois o livro vai se imergindo tanto no estudo introspectivo de Billy que por vezes me esqueci que estava lendo um thriller. A segunda metade da obra vem para retificar, ou melhor, avançar organicamente a história do assassino de aluguel. Temos a inserção de uma determinada personagem que altera o estilo de leitura – menos individual e pessoal com Billy, e mais dinâmica com a dupla – e outras ações que transformam Billy Summers em um livro de fuga criminal. Meio que um “Bonnie e Clyde” simpático e cheio de traumas. O ritmo é acelerado, mais amplo em ambientações e mais objetivo narrativamente. A história também fica mais violenta, a moral e a ética mais turvas e vemos a exibição completa do arsenal de horror – realista e humano – de King.
A transição entre os dois tipos de histórias pode parecer estranha ao ser lida no meu texto, mas no livro funciona. Toda a caracterização do ato inicial dá uma carga dramática à fuga, além de proporcionar mais liberdade para King focar no enredo criminoso sem precisar explicar backstories. O autor é, como sempre, muito criativo com detalhes e incidentes que deixam o encadeamento do crime mais (divertidamente) problemático, navegando entre uma estética literária meio noir e um realismo trágico – temos histórias de guerra, violência doméstica e abuso sexual. Minha única ressalva é em relação a como King vai largando personagens e subtramas ao longo da jornada de Billy. Isso é uma característica negativa do autor, já que ele escreve “direto”, sem pensar de antemão em detalhes narrativos. Ainda assim, são pormenores em um dos melhores romances recentes do “Rei do Terror”, se aventurando mais uma vez em ficção e thriller policial/criminal. Com uma história de “último trabalho” que abrange toda uma vida através da literatura, Billy Summers é um dos melhores estudos de personagem de King.
Billy Summers – EUA, 2021
Autor: Stephen King
Editora: Scribner
Data original de lançamento: 03 de agosto de 2021
Editora no Brasil: Suma (Suma das Letras, Companhia das Letras)
Data de lançamento no Brasil: 29 de setembro de 2021
Tradução: Regiane Winarski
Páginas: 699 (edição brasileira)