A essa altura, já não é mais uma novidade nenhuma louvar uma aventura com a imbatível dupla formada pelo 6º Doutor e pela professora Evelyn Smythe, certo? Neste sexagésimo episódio da Main Range, na Big Finish, os dois viajantes se materializam em Edimburgo, Escócia, e passam ali o período entre o Natal de 1828 e o dia 28 de janeiro de 1829, ou seja, um tempo considerável morando num local marcantemente hostil e num período histórico que, em tudo, nos lembra aquelas aventuras de terror gótico do 4º Doutor, especialmente o arco The Talons of Weng-Chiang (apesar deste ser ambientado bem mais no futuro, em 1889). Há, porém, uma explicação histórica convincente para todo esse período de investigação do Doutor e sua companheira historiadora. Eles estão lidando com um famoso (e real) caso macabro de “assassinatos para fins de desenvolvimento da ciência” — se é que podemos chamar o que daí resulta de… ciência.
Em nossa realidade, no decorrer de dez meses do ano de 1828, dezesseis pessoas foram assassinadas em Edimburgo. A tensão que tomava conta da cidade e o clima agressivo que marcava a convivência das pessoas na periferia, por causa das paupérrimas condições financeiras, dificultava a ação da polícia e atrasava as investigações. Na história, o Doutor e Evelyn chegam ao final dessa sequência de assassinatos, sugerindo uma certa modificação na temporalidade dos eventos, mudando os meses e os dias, mas não os fatos. O caso em questão é o que envolve a infame atuação de William Burke e William Hare, assassinos que recebiam certa quantia em dinheiro para entregarem corpos ao famoso Dr. Robert Knox, para dissecação em suas palestras de anatomia. Novamente: este é um caso real, assim como os personagens presentes nessa história. Com a intensa direção de Gary Russell, o texto de Robert Ross recebe a merecida camada de terror que tem, e, exceto por enrolar um pouco nos contatos do Doutor e Evelyn com os habitantes da cidade, faz um admirável trabalho de ficção histórica, encantando e enervando o espectador.
A trama discute com bastante propriedade a infame prática de roubo de cadáveres em cemitérios e as constantes encomendas de assassinatos para estudos científicos no século XIX (uma dobradinha muito bem editorada com o episódio #58, The Harvest, sobre assassinatos para doação de órgãos), juntando a miséria dos cidadãos e o aproveitamento disso por indivíduos que “desenvolviam a medicina” e pagavam pelos corpos com a seguinte condição: “quanto mais frescos, mais caros“. O caso aqui retratado foi tão impactante para a época, que forçou o Parlamento britânico (não sem fervorosas opiniões contrárias e manifestações públicas e violentas) a aprovar, 4 anos após os acontecimentos, a Lei de Anatomia de 1832, que deu licença gratuita a médicos, professores de anatomia e estudantes de medicina de boa-fé para dissecar corpos doados à ciência, tentando evitar, assim, o comércio ilegal de cadáveres. No meio de todo esse processo que lida com a maldade e infâmia humanas (não existem aliens aqui: este é um caso de terror gótico somado a um true crime clássico), salta aos olhos uma figura que também é histórica, mas com quem o Doutor tem imediata conexão, quando sabe de quem se trata: o jovem de 18 anos chamado James Wilson, mais conhecido como “Daft Jamie”.
O roteiro não dá pistas se o Doutor conhecia muito bem todos os aspectos desse período histórico, mas ele certamente sabia quem era Daft Jamie, e imediatamente quis proteger o rapaz, que historicamente era vítima de agressões, xingamentos e maus tratos. Jamie mancava porque tinha os pés deformados, era mentalmente deficiente, falava enrolado e com muita dificuldade, mas era inofensivo e tinha uma inocência que o colocava ainda mais na linha de exploração pelos outros, pois se dispunha a prestar todo tipo de serviço como se fosse uma “diversão”, apenas para obter um pouco de comida e roupas quentes. Juntando esses fatos históricos ao gatilho amoroso ativado quando o Doutor ouve o nome “Jamie” (“um nome nobre“, como ele repete diversas vezes, lembrando-se de seu antigo companion), temos aqui uma das ligações mais tocantes do Time Lord com um habitante local em uma de suas viagens. E dramaturgicamente também estamos diante de um personagem magnético, pois ele é interpretado por ninguém menos que David Tennant.
Confesso que me emocionei com a finalização dessa história, assim como acumulei todo ódio do mundo contra Robert Knox, cujas ideias, ao menos como são retratadas no texto de Ross, mostram-se puramente eugenistas. Para ele, essas pessoas pobres “não tinham serventia social” e, por isso mesmo, “mereciam morrer, para ajudar a ciência a progredir“. O Doutor dá cada paulada ético-moral no personagem que o leitor consegue recobrar um pouco da felicidade, mas a História deve prosseguir o seu rumo correto, e mesmo com o Senhor do Tempo adiando a tragédia mais emocionante do arco, ao final de tudo, ele precisa levar o rapaz para o local onde ele seria capturado e morto, para ser dissecado diante de uma bancada de alunos na Universidade, no dia seguinte. É pensando nisso que o nosso coração se aperta quando nos lembramos das frases “Jamie amigo do Doutor” ou “Jamie e Doutor vão viajar juntos!“. Impossível não se emocionar, especialmente porque estamos falando da dramatização de um caso real. Jamie. Um nome nobre, de fato.
Big Finish Mensal #60: Medicinal Purposes (Main Range 60) — Reino Unido, agosto de 2004
Direção: Gary Russell
Roteiro: Robert Ross
Elenco: Colin Baker, Maggie Stables, Leslie Phillips, David Tennant, Glenna Morrison, Kevin O’Leary, Tom Farrelly, Janie Booth
Duração: 94 min.