Quando a saga do Universo Divergente teve início com o interessante arco Scherzo, a mensal da Big Finish parecia querer explorar com essa nova fase das aventuras do 8º Doutor um tipo de histórias que se beneficiasse das características que só um drama de áudio seria capaz de oferecer. Entretanto, The Creed of The Kromon, arco que se seguiu ao início desta nova etapa, nos trouxe uma aventura mais genérica e excessivamente derivativa, desperdiçando o potencial oferecido pelo Universo Divergente, um lugar onde o conceito de tempo não existe. Felizmente, The Natural History of Fear retoma o conceito mais experimental do começo dessa saga, ainda que por um viés completamente diferente.
Na trama, Light City é uma sociedade regida por um governo totalitário, onde toda a população é vigiada, e fazer perguntas é considerado um crime terrível, assim como qualquer ação que demonstre algum traço de individualidade. Mas quando um homem sem nenhum histórico de rebeldia toma uma ação subversiva extrema, uma força de investigação liderada pelo Editor tenta descobrir o que provocou esse evento, e passa a desconfiar que o caso está relacionado aos programas de infoentretenimento que narram as aventuras de um viajante espacial e seus Companions.
Com roteiro escrito por Jim Mortimore, o arco The Natural History of Fear inspira-se diretamente em tramas clássicas de futuros distópicos, como o livro 1984 de George Orwell, e o filme Matrix (1999), das Irmãs Wachowsky, além de também emprestar elementos de outro Sci-Fi distópico, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, ao narrar a história inicialmente do ponto de vista de um agente opressor. Através desse ponto de vista interno, o roteiro de Mortimore nos dá uma boa noção do funcionamento do sistema de vigilância e punição de Light City, e do clima de medo e paranoia que existe nesta cidade até mesmo entre aqueles que deveriam policiar os tais atos subversivos. Da mesma forma, é muito inteligente a forma como o texto discute o poder da arte e do entretenimento, que pode ser usado tanto para anestesiar a população quanto para gerar reflexões que gerem ações transformadoras na sociedade; e exemplos históricos dos dois cenários é o que não falta.
Mas embora a trama seja conduzida de forma instigante pelo texto, é a maneira como ela é contada que chama a atenção neste arco. Afinal, a maioria dos personagens principais desta história são interpretados por Paul McGann, India Fisher e Conrad Westmaas, e não nos papéis que estamos acostumados a ouvi-los, o que deixa o ouvinte se perguntando durante boa parte do arco o que diabos está acontecendo. Ao viver personagens como o Editor e a Enfermeira nº 3, McGann e Fisher em momento nenhum tentam distinguir as suas entonações daquelas que usam para interpretar o 8º Doutor e Charley Pollard, em uma escolha que levanta diversas perguntas sobre a situação desenvolvida. O Doutor e seus companheiros se infiltraram no governo de Light City? Eles sofreram algum tipo de lavagem cerebral pelos membros desta ditadura?
O texto é inteligente na forma como joga com as expectativas do público em relação ao que vai acontecer a seguir, ao mesmo tempo em que brinca de maneira divertida com a história da série, vide as referências que faz a antigos episódios do programa, e até aos famigerados recons de episódios perdidos. Além disso, ao se permitir brincar com a ideia de que no Universo Divergente, o conceito do tempo está longe de ser algo claro, o roteiro de Jim Mortimore adiciona uma camada extra de intriga ao tom febril que o arco adota a partir de seu segundo capítulo. Gosto também das reflexões sociológicas propostas pelo texto sobre as ideias de revoluções, que acertadamente ignora a visão ingênua de muitas histórias distópicas (algumas inclusive vistas em Doctor Who) de que derrubado um governo malicioso, tudo vira alegria e flores, pois geralmente o que se segue é um período de incertezas que pode até fazer parte da população voltar a desejar a suposta segurança do autoritarismo.
A equipe técnica, sob a batuta do diretor Gary Russel, entrega um trabalho de sonoplastia muito interessante, criando uma ambientação sonora que combina perfeitamente com a atmosfera claustrofóbica e paranoica da história, com o mesmo comentário podendo ser aplicado para a trilha sonora. O elenco, como dito antes, também é maravilhosamente bem dirigido, especialmente pelo trabalho de McGann e Fisher, já que boa parte das dúvidas que sustentam a narrativa são baseadas na performance dos dois atores, que devem viver personagens que são ao mesmo tempo semelhantes e diferentes de seus papéis regulares na série. Conrad Westmass também se sai bem como o Novo Editor, mas não causa o mesmo impacto de seus colegas, por mal conhecermos o seu personagem regular, e assim não se cria o contraste.
Ao realmente explorar as possibilidades apresentadas pelo cenário do Universo Divergente, brincando com a perspectiva de tempo e das próprias particulares da mídia puramente auditiva, The Natural History Of Fear sai da fórmula usual de Doctor Who para entregar uma abordagem diferente do Doutor e de seus companheiros, que mesmo que, de certa forma, participem pouco da história, tem a sua presença sentida ao longo de todo o áudio. Se você está atrás de uma aventura mais tradicional do Doutor, talvez o arco de Jim Mortimore não te agrade, mas se o ouvinte estiver aberto a um thriller psicológico com tintas sociais que usa como pano de fundo, pode se surpreender.
Big Finish Mental #54: The Natural History Of Fear (Reino Unido, março de 2004)
Direção: Gary Russell
Roteiro: Jim Mortimore
Elenco: Paul McGann, India Fisher, Conrad Westmaas, Geoff Searle, Alison Sterling, Seán Carlsen, Wink Taylor, Jane Hills, Ben Summers
130 minutos