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Crítica | Bicho de Sete Cabeças

por Lucas Borba
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Uma produção audiovisual, por contar com distintos recursos narrativos, pode se destacar de modos diferentes. Certas obras, por exemplo, tem nos diálogos sua grande força, enquanto outras apresentam um maior apelo visual e outras, ainda, possuem magistrais atuações.

Não que o longa Bicho de Sete Cabeças, com direção de Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolognesi, baseado no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, não conte com boas doses de todos esses elementos, mas há um outro que se sobrepõe a eles ou, melhor dizendo, serve como ponto de apoio para os demais. O estímulo sensorial.

Tal recurso, é claro, não é nenhuma novidade. Pelo contrário, o seu uso apenas cresce na corrida comercial por uma experiência cinematográfica que se aproxime cada vez mais de uma reprodução do real. O problema é que, em sua maioria, essas experiências se preocupam tanto em atingir os sentidos físicos que se esquecem de conectá-los, mais profundamente, ao emocional do espectador, resultando em produtos que, quanto mais reais tentam ser, mais artificiais o parecem. Bicho de Sete Cabeças, porém, faz uso de estímulos simples, mas inteligentes, precisos, que dialogam perfeitamente com a proposta da narrativa e desempenham um papel crucial para que o filme tenha se tornado uma obra tão marcante, reconhecida e debatida até hoje.

Na trama, o adolescente Neto (Rodrigo Santoro), ou Netinho, como é chamado pela típica família de classe média da qual faz parte, e com a qual vive na grande São Paulo, simplesmente enoja aquilo que o pai representa enquanto pessoa. Esse simples conflito base é evidenciado já nos primeiros minutos de projeção e, embora isso aconteça de modo sutil, tende a logo garantir a total atenção do público e a se tornar o fio condutor de tudo o que se dará daí por diante. Não que conflitos entre pais e filhos não sejam comuns, tampouco, como no caso de Neto, um sonho de futuro e da continuidade de um estilo de vida idealizados pelo pai para seu filho, mas que não é, nem de longe, correspondido pelo segundo. No que diz respeito a Neto e seu pai, Wilson (Othon Bastos), contudo, tal conflito não tardará a adquirir proporções trágicas.

A princípio, seja com os ecos da tagarelice do pai no carro sobre futebol, ou com a voz do homem distante, em certa cena que começa com a mãe o acordando – embora a voz da mulher soe naturalmente próxima, evidenciando que o modo como o garoto ouve o pai não se deve ao sono, mas, tão somente, ao puro e simples desinteresse de Neto por Wilson -, somando-se, é claro, a dedicada atuação de Santoro, a imersão do público no interior do protagonista inicia sem didatismo; em vez disso, o longa quer que o público vivencie o emocional do personagem. Quando, pois, aos olhos do pai, a situação chega ao seu limite, Neto é iludido por ele, sob o pretexto de visitar com Wilson um parente doente, e dá por si sendo deixado em um manicômio. Apesar do pesadelo que daí principia para o adolescente, no entanto, a narrativa jamais tenta esconder ou minimizar sua personalidade ou seu estado de espírito. Todo o tempo, fica claro que Neto é uma figura que simplesmente não se ajusta à sociedade da qual faz parte, independente de existir, ou não, quem esteja certo ou errado nessa ou naquela instância. No manicômio, todavia, quando o filme assume, de fato, um ar de denúncia, a coisa muda de figura.

À primeira vista, chama a atenção o realismo que impera na construção do ambiente psiquiátrico no qual Neto é internado, com as atuações retratando um meio termo entre a comédia e a tragédia nas figuras de seus colegas de internação, fruto de uma equipe de produção que, claramente, acertou em cheio na escolha do elenco. Além de tais aspectos mais explícitos, incluindo-se a diferença entre o ambiente para visitas das famílias e os aposentos ocultados do grande público – diferença essa explicitada pelo próprio Neto -, entretanto, mesmo o espectador mais desatento deverá ser influenciado por aspectos mais sutis, desde as canções evocando agonia e melancolia, do grupo Tribalistas – a constante repetição da faixa O Seu Olhar é, com certeza, o maior destaque aqui – até a voz grave e austera do psiquiatra responsável pelo manicômio; aspectos fundamentais para que o público vislumbre o psicológico de Neto e a ameaça sentida por ele com tanta clareza.

Talvez a prova mais latente da compreensão da obra de que certas coisas desempenham melhor seu papel no campo do imaginário esteja mais para o fim do longa, quando se descobre que Neto, enfim livre do manicômio, teve uma crise em certa festa, mas sem que tal crise seja mostrada – o roteiro prefere, mais uma vez, concentrar-se no que se passa no interior do protagonista, para que, a seguir, uma simples ligação trate de contar o resto. Afinal, Bicho de Sete Cabeças não está preocupado com fatos concretos, mas com a reação e o tratamento social ao comportamento individual e, mais especificamente, em refletir sobre a natureza de Neto e sobre como o mundo ao seu redor lida com aquilo que não quer ou não está preparado para entender. Não é à toa que Bicho de Sete Cabeças ficou tão conhecido como um filme de denúncia.

Sobre o que é diferente, recai todo o tipo de sentimentos, tais como incompreensão, medo, oportunismo, piedade, raiva e até sadismo. Compreensão genuína ainda é, na certa, o item menos frequente na lista. A adaptação cinematográfica de Bodanzky transita por tais sentimentos e, mais do que ter se configurado como uma crítica de importância indiscutível ao sistema psiquiátrico brasileiro, serve como alerta para um elemento invisível, mas retratado com uma clareza quase palpável no longa e inerente a cada ser humano, inatingível por qualquer julgamento humano: o universo que habita o interior de cada um.

Bicho de Sete Cabeças, Brasil – 2001
Direção: Laís Bodanzky
Roteiro: Luiz Bolognesi (baseado em obra de Austregésilo Carrano)
Elenco: Rodrigo Santoro, Othon Bastos, Cássia Kis Magro, Daniela Nefussi, Jairo Mattos, Altair Lima, Lineu Dias, Caco Ciocler, Gero Camilo, Marcos Cesana
Duração: 74 min.

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