- Há spoilers da série. Leiam, aqui, as críticas dos episódios anteriores e, aqui, de todo o Universo Breaking Bad.
Wine and Roses elegantemente montou o tabuleiro para permitir que o jogo final começasse e, considerando os diversos personagens, linhas narrativas e peças móveis, era natural que víssemos relativamente pouco de cada coisa. É, como disse lá na crítica, o ônus de ter sido o primeiro episódio da temporada final de uma série tão importante, algo que foi trabalhado com o usual rigor técnico que Better Calll Saul herdou de Breaking Bad e aperfeiçoou. Carrot and Stick, portanto, vem desdobrar os eventos postos retirando Lalo da equação pelo momento e focando primordialmente em Nacho, de um lado, e, claro, em Kim e Saul de outro.
A panela de pressão que imediatamente sentimos que era o motel onde Nacho se hospedara por ordem de Tyrus é palco para uma primorosa sequência em que o perseguido traficante faz de absolutamente tudo para sobreviver. O roteiro de Thomas Schnauz e Ariel Levine começam a indiretamente lidar com Nacho ao fazer o episódio começar com Mike e equipe plantando um envelope na moradia dele com aquela precisão de relógio e frieza que o ex-policial sempre mostrou ter. Mas essa frieza é relativizada por um senso inafastável de honra que Mike tem em geral e seu respeito em especial por Nacho, o que o leva a esconder a carteira de identidade do pai e a enfrentar Gus quando o “homem das galinhas” ordena que Mike o traga para seu quartel-general.
Na medida em que esse pano de fundo é cuidadosamente estendido, vemos Nacho inquieto em um quarto caindo aos pedaços, mas, ao mesmo tempo, tão lindamente iluminado e fotografado, que por alguns segundos esquecemos de tudo e só temos olhos para a ambientação. Vince Gilligan, que dirige o episódio, faz a câmera seguir Nacho por todos os lados do pequeno recinto que, porém, ganha dimensões maiores graças às movimentações da lente e da inundação de luz que quebra a escuridão amarelada. E a pressão vai aumentando vagarosamente, algo que primeiro parece ser paranoia de Nacho quando ele cisma com uma fresta no prédio em frente, somente para sua desconfiança revelar-se como verdade, levando a uma sequência de ação que vai desde o silêncio interrompidos por ligações telefônicas com Nacho apontando a pistola para o espião comedor de salgadinhos, até o “duelo de faroeste” versão moderna com ele acelerando a picape na direção dos ameaçadores gêmeos, isso depois de descarregar a arna em um dos pistoleiros descartáveis. Não sei qual será o fim de Nacho, já que ele não aparece em Breaking Bad, mas, se eu já torcia por ele antes, agora é que eu virei fã de carteirinha dele.
A tensão e violência do outro lado da fronteira é, porém, apenas um dos dois grandes momentos do episódio, com o outro sendo, claro, a continuidade do golpe arquitetado por Kim para derrubar Howard. No entanto, mais importante do que os detalhes do que acontece, é falar um pouco de Kim e suas motivações, pois pode parecer que ela está “fora de seu personagem” com esse seu sentimento talvez desproporcional em relação à Howard. Tenho para mim que, ao contrário, essa Kim que vemos agora é a Kim que resultou de tudo o que vimos antes, pois temos que primeiro lembrar que ela já tinha uma predisposição a encontrar algum tipo de prazer em pequenos golpes. Sua relação com Jimmy só fez com que isso viesse à tona e todos os eventos seguintes, incluindo tudo o que ela testemunhou na temporada anterior, funcionaram como juros compostos que a transformaram no que ela agora é, uma mulher capaz de tudo para defender e proteger quem ela ama e que, mesmo assim não perde a compostura e, como Mike, um senso de honra e justiça que subjaz em tudo o que faz.
A estranheza que muitos podem sentir – e é natural – vem do verdadeiro grande golpe de Better Call Saul, golpe esse aplicado não por Jimmy ou Saul e certamente não por Kim, mas sim por Gilligan e Peter Gould. Afinal, ostensivamente, a série prelúdio de Breaking Bad era para ser uma história de origem de Saul Goodman, e ela é, claro, mas, correndo em paralelo e logo abaixo da superfície, os showrunners brilhantemente costuraram o que talvez, em retrospecto, seja aquilo pelo que mais lembraremos da obra: a ascensão e queda (e talvez ascensão novamente) de Kim Wexler. Posso estar enganado, mas creio que seu destino não é o mais óbvio – sua morte – mas sim sua transformação completa. Em que, não sei exatamente e não gosto de ficar conjecturando, mas tenho para mim que ela continuará no caminho que está seguindo.
Esse caminho pode ser ilustrado por outra cena que parece referenciar um clássico cinematográfico. Se a abertura de Wine and Roses tinha um perfume de Cidadão Kane, a primeira vez que vemos Saul e Kim – nessa ordem – em Carrot and Stick é uma excelente piscadela à sequência de abertura de O Poderoso Chefão, com Saul sendo Amerigo Buonasera e Kim, claro, ninguém menos do que Don Vito Corleone. Reparem em Saul criando seu personagem e a câmera lentamente se afastando para revelar Kim que não olha para ele, apenas o escuta, fazendo então seus comentários sobre a performance. Ela é a marionetista aqui. Para todos os efeitos, ela é como a produtora de um filme em que Jimmy vive Saul conforme as especificações dela, seja o carro que ela sugere a ele no episódio anterior, sejam as roupas, sejam as palavras que sairão de sua boca. Se a ascendência de Kim sobre Saul já havia ficado clara no episódio que abriu a temporada, agora ela é mais do que evidente.
E isso é tão evidente que Saul, que para nós era a vareta do título, tornou-se a cenoura, ou seja, alguém que procura fazer algo sem usar a força (não falo de força física, obviamente). Kim é a vareta, algo que ela mesmo diz e que, na cena em que ela friamente ameaça destruir de vez os Kettlemans, torna-se assustadoramente cristalino (repare que ela novamente não olha para sua marionete, só a escuta…). Um caso em que pupila ultrapassou o mestre? Talvez, mas eu diria que estamos diante de um caso em que a pupila nunca foi verdadeiramente uma pupila ou, no mínimo, apenas queria parecer uma pupila. É ou não é um baita de um golpe que Gilligan e Gould nos deu?
Já no segundo episódio da derradeira temporada, Better Call Saul mostra porque merece toda nossa atenção e, mais ainda, porque sofreremos tremendamente quando essa maravilha acabar. Ainda há um bom caminho pela frente, especialmente considerando a divisão do ano em duas metades, mas as peças estão andando e já é possível começar a ver o delineamento do fim.
Better Call Saul – 6X02: Carrot and Stick (EUA, 18 de abril de 2022)
Criação e showrunners: Vince Gilligan, Peter Gould
Direção: Vince Gilligan
Roteiro: Thomas Schnauz, Ariel Levine
Elenco: Bob Odenkirk, Jonathan Banks, Rhea Seehorn, Patrick Fabian, Michael Mando, Tony Dalton, Giancarlo Esposito, Mark Margolis, Daniel Moncada, Luis Moncada, Ed Begley Jr., Jeremiah Bitsui, Ray Campbell, Rex Linn, Javier Grajeda, Julie Ann Emery, Jeremy Shamos
Duração: 59 min.