- Há spoilers da série. Leiam, aqui, as críticas dos episódios anteriores e, aqui, de todo o Universo Breaking Bad.
Quase exatamente dois anos depois que Something Unforgivable foi ao ar, Better Call Saul retorna às telinhas para sua última temporada que, como aconteceu com Breaking Bad, ganhou mais episódios do que o normal (13 no lugar dos 10 regulamentares) e que, seguindo a estratégia padrão da AMC, serão transmitidos em dois blocos, um de sete capítulos que vai até 23 de maio e outro de seis, começando dia 11 de julho e acabando dia 15 de agosto de 2022. E o começo do fim, como lá atrás no início da primeira temporada, trouxe dois episódios liberados no mesmo dia que, porém, analisarei em duas críticas separadas, publicadas em dias consecutivos, para dar todo o tratamento solene que a criação de Vince Gilligan e Peter Gould merece. Vamos então à crítica do 51º episódio de uma das mais magníficas séries de todos os tempos?
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É natural que a última temporada de uma série tão impressionante quanto Better Call Saul cause trepidações no espectador, trepidações essas causadas pelas saudades dos personagens incrivelmente bem interpretados por um elenco próximo da perfeição (um eufemismo para perfeito, só para ficar claro), dos roteiros cirurgicamente escritos por uma equipe capitaneada por Vince Gilligan e Peter Gould e pela direção que traria sorrisos a diretores perfeccionistas como Stanley Kubrick e Akira Kurosawa. Mas há, também, as trepidações causadas por aquele misto de expectativa e tensão que deixam dúvidas, bem lá no fundo da mente, se os showrunners realmente conseguirão encerrar a história como ela merece ser encerrada.
Se o passado é a prova de alguma coisa, tudo leva a crer que Better Call Saul ganhará um final espetacular, mas diria que as dificuldades e complexidades, aqui, são maiores do que as enfrentadas pela dupla criativa em Breaking Bad. É bem verdade que o único grande personagem cujo destino desconhecemos completamente é Kim Wexler (Rhea Seehorn), mas Better Call Saul não só precisa, como o prelúdio que preponderantemente é, encaixar-se na série que começou tudo, como também precisa, como a continuação que também é, não podemos esquecer, bater o martelo sobre o futuro de Jimmy McGill, mais conhecido como Saul Goodman, mas que também é/será Gene Takavic, gerente de uma loja da rede Cinnabon, em Omaha (todos vividos por Bob Odenkirk).
Wine and Roses, aliás, faz questão absoluta de nos lembrar dessa complexidade entre passado e futuro ao começar com uma deslumbrante sequência à la Cidadão Kane, só que em cores – muitas e berrantes cores – em que vemos os bens da extravagante mansão de Saul Goodman, o que inclui um vaso sanitário dourado, um verdadeiro trono, sendo apreendidas pela polícia em algum momento após o final de Breaking Bad, que termina com a rolha da tequila Zafiro Añejo, que carrega forte simbologia como, claro, Rosebud. É a primeira vez em que vemos o futuro de BCS em cores, além de ser a primeira vez em que realmente temos alguma ideia da dimensão da fortuna que Saul amealhou representando o cartel, o que tem o efeito de abrir nossos olhos para o que está em jogo no passado e no futuro, com o paralelo “kaneano” pelo menos em tese delineando o que está por vir.
Depois dessa abertura que mais parece um balé e que dá vontade de assistir por muitos mais minutos do que os poucos que nos são oferecidos, o roteiro, escrito por Gould, arregaça as mangas para lidar com as consequências diretas do ataque ao complexo de Lalo Salamanca no México e às escolhas e decisões do casal de advogados em suas respectivas novas vidas. Existe um componente claramente prático ao texto do episódio, que objetiva, principalmente, situar o espectador em relação a todos os personagens da série, algo que, normalmente, é um ônus inevitável de um começo de temporada, especialmente a final e especialmente depois de um intervalo incomum de dois anos em razão da pandemia.
No entanto, esse ônus é muito bem tratado por Gould, que mantém a separação dos núcleos principais e lida com cada um deles, intercaladamente, ao longo da quase uma hora de projeção. Apesar de haver muita informação compactada, com situações que exigem o recorte e a transição entre diversos personagens, a direção de Michael Morris, que mantém toda a linguagem visual ditada por Gilligan desde 2008 – um desbunde de simetria e de primeiro plano focado em objetos prosaicos – consegue cumprir a difícil missão de dar coesão narrativa a tudo o que vemos.
De um lado, temos Lalo (Tony Dalton) fabricando sua morte ao assassinar um casal amigo somente para usar o corpo do marido como se fosse o seu em uma cena sinistra que não faz uso de nenhum pingo de violência visual, e, depois, tentando retornar aos EUA somente para mudar de ideia ao conversar com Hector Salamanca (Mark Margolis) e, claro, temos Nacho (Michael Mando) fugindo da cena do crime conforme instruções recebidas por Tyrus (Ray Campbell) a mando de Gus Fring (Giancarlo Esposito). Tudo é costurado com os tão importantes detalhes, como a conexão de Gus com Juan Bolsa (Javier Grajeda), a conversa franca de Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) com seu chefe sobre a necessidade de se reconhecer o valor de Nacho, algo que claramente Gus não reconhece e provavelmente planeja sua eliminação e, claro, a presença ameaçadora dos gêmeos Leonel e Marco Salamanca (Daniel e Luis Moncada). Ou seja, todas as peças são devidamente colocadas no tabuleiro para as jogadas finais.
Do outro lado, temos Kim e Saul (Jimmy, agora, é Saul completamente, algo inclusive reconhecido e fomentado por Kim) vivendo suas novas vidas, a primeira em sua prática solo que procura ajudar os despossuídos, o que ao mesmo tempo lhe dá prazer e serve como uma forma de ela expiar os seus pecados e os pecados que ela deixa ser cometidos por Saul debaixo de seu nariz, e o segundo em sua continuada representação de Lalo, mesmo cometendo um deslize diante da dupla policial. Mas o ponto principal nessa relação dos dois é a cumplicidade literal no início da execução do plano de Kim para matar dois coelhos com uma cajadada só: destruir Howard Hamlin (Patrick Fabian) de forma a levá-lo a fazer um acordo no caso Sandpiper que significa muito dinheiro para Saul. O estratagema, concebido por Kim, não é revelado, mas seu início é tenso, com Saul tendo que plantar a semente da discórdia e da desconfiança na forma de um saquinho de talco que parece de cocaína no armário do clube de golfe de Howard de maneira que seu colega Clifford Main (Ed Begley Jr.) veja, o que o faz enfrentar um obstáculo na forma de um raivoso Kevin Wachtell (Rex Linn), do banco Mesa Verde, ex-cliente de Kim.
O interessante no núcleo Saul-Kim é que, na verdade, ele é Kim-Saul, pois fica evidente que o comando está nas mãos da advogada que, agora, parece abraçar seu lado sombrio de vez. É como se Saul, aqui, fosse seu fantoche, seu instrumento para ela conseguir o que quer, mostrando o que potencialmente é a corrupção final da personagem, corrupção essa que, ironicamente, foi catalisada por Jimmy e Saul. Essa abordagem já vinha sendo construída há diversas temporadas, ganhando ênfase na colocação de Seehorn no centro do palco na temporada anterior, o que garantiu momentos memoráveis à atriz e à personagem e, ao que tudo indica, isso continuará com força total no derradeiro ano, intensificando as dúvidas sobre o destino de Kim.
Wine and Roses é, portanto, um episódio ditado pelas amarras criadas pelo ônus de ser o primeiro episódio da temporada final de uma série tão importante depois de um hiato fora do comum, naturalmente tendo que lidar com muita coisa ao mesmo tempo, mas com Gould mantendo a coesão narrativa com seu roteiro cuidadoso e Morris traduzindo isso visualmente com uma direção compassada, que mantém o ritmo constante e tenso. Sim, Better Call Saul está de volta para seu último ano e sim, isso dá trepidações de todo tipo para quem vem acompanhado a série. De toda forma, seja muito bem-vinda, pois sentimos muito sua falta!
Better Call Saul – 6X01: Wine and Roses (EUA, 18 de abril de 2022)
Criação e showrunners: Vince Gilligan, Peter Gould
Direção: Michael Morris
Roteiro: Peter Gould
Elenco: Bob Odenkirk, Jonathan Banks, Rhea Seehorn, Patrick Fabian, Michael Mando, Tony Dalton, Giancarlo Esposito, Mark Margolis, Daniel Moncada, Luis Moncada, Ed Begley Jr., Jeremiah Bitsui, Ray Campbell, Rex Linn, Javier Grajeda
Duração: 55 min.