Benedetta tem muito mais paralelos fílmicos com Tropas Estelares do que muita gente deve perceber. No tão execrado longa de 1997, Paul Verhoeven trabalhou tão bem sua sátira social e política sobre autoridade e o mal uso do poder que dela decorre sob o verniz chamativo de um filme de guerra espacial contra insetos gigantes cheio de sangue, gosma e tripas, que muita gente, na época, só conseguiu ver a superfície, julgando a proverbial árvore pela floresta. O segundo longa da fase francesa do cineasta – cinco anos depois de Elle – usa o excesso de imagens eróticas e sexualizadas em combinação com imagens heréticas para trabalhar exatamente o mesmo tema de Tropas Estelares.
Sim, sim, o longa é sobre uma freira lésbica – que se torna abadessa – em plena Itália renascentista baseada na vida real de Benedetta Carlini conforme documentado em Atos Impuros, de Judith C. Brown, mas essa descrição, combinada com uma inteligente e jocosa aproximação ao sub-sub-gênero conhecido como nunsploitation, além do uso de elementos imagéticos católicos para causar escândalo na mente dos facilmente escandalizáveis, é apenas o chamariz de Verhoeven, um chamariz, aliás, por vezes desnecessariamente bastante evidente e didático, ainda que contando com um design de produção e figurinos belíssimos. O cineasta coloca na pauta a homossexualidade de um freira no século XVII não para discutir o preconceito contra homossexuais, não para trabalhar a visão retrógrada de religiões em geral sobre o tema no passado e hoje em dia, mas sim para, em essência, desvelar a hipocrisia do Homem.
Claro que a visão preconceituosa percorre a duração da fita toda, estando sempre presente, mas essa presença é mantida em segundo plano, como um elemento que, por sua obviedade, apenas funciona para “preencher os vazios” da construção narrativa. O ponto é que o roteiro que David Birke (de Elle) co-escreveu com o próprio Verhoeven vai muito além disso e trabalha cada personagem relevante da história em tons de cinza, sem ninguém sendo exatamente santo ou diabo e, no processo, cinicamente afirmando com todas as letras que o que nos impulsiona não é o bem comum, mas sim o próprio interesse, nosso egoísmo. O que mais podemos extrair de uma cena logo no começo em que o pai (David Clavel) de uma Benedetta ainda bem jovem (Elena Plonka), com nove anos de idade, negocia – sim, negocia! – com a Reverenda Madre do convento de Pescia (Charlotte Rampling, vivendo a segunda reverenda madre no mesmo ano, a outra em um futuro distante) a entrega de sua filha à vida como esposa de Jesus Cristo? Ali, Benedetta, completamente sem escolha, é gado, com o pai querendo subir na hierarquia social ao poder dizer que tem uma filha freira e a Reverenda Madre não a acolhendo pela bondade de seu coração, mas sim pela quantidade de ouro em seus cofres.
Essa sequência dá o tom da história que segue e que, já aviso logo aos puristas, afasta-se consideravelmente dos fatos reais, com Benedetta, 18 anos depois, vivida por Virginie Efira, passando a mais constantemente ter visões milagrosas – e crescentemente mais eróticas – de Jesus Cristo e inclusive sendo marcadas com as chagas de seu sofrimento na cruz. Como o dinheiro no bolso da Reverenda Madre, os milagres são aceitos por seu valor de face não por serem verdadeiramente aceitos como milagres, mas sim como peças de interesse próprio dentro da hierarquia religiosa. São essas visões, também, que fazem com que a rebelde (he, he, he) noviça Bartolomea (Daphne Patakia) passe a dividir o “quarto” com Benedetta, por ordem da abadessa, o que logo leva ao relacionamento chamariz (cinematograficamente falando) das duas.
O problema que tenho é que esse “tom” se perde um pouco com a sequência climática na praça central de Pescia, que coloca em primeiro plano o didatismo que mencionei antes e faz um “show de luzes”, por assim dizer, típico de blockbusters hollywoodianos. Diria que, aqui, Verhoeven perdeu um pouco a mão em sua pegada crítica e entregou-se a uma abordagem mais simplista para criar tensão e ação onde não era realmente necessário e que acaba levando a um fim – explicado em legendas ao final (e que efetivamente aconteceu com a personagem real) – que não decorre exatamente do que é mostrado.
No entanto, aqueles que porventura enxergarem Benedetta como mais uma obra que “condena” a tão “perseguida” Igreja Católica precisam ajustar o grau das lentes (ou passar a usá-las), pois a crítica, aqui, vai muito além disso. Verhoeven não é um diretor de uma nota só, para começar, e, como eu disse no começo, a superfície chamativa, aqui, é só isso mesmo, a superfície. O foco é em toda a estrutura sócio-política de praticamente o mundo todo em que tudo o que é feito, é feito por razões mesquinhas, olhando o micro, não o macro. Benedetta mesmo fica sob o escrutínio das câmeras de Verhoeven. O que ela realmente quer? Suas visões são genuínas, maquiavelicamente inventadas ou fruto de uma mente doente? E Bartolomea? O que ela sente por Benedetta é amor ou sua relação com a freira é apenas um meio para ela chegar a seus fins? E a coisa continua com aos mesmos tipos de perguntas podendo ser feitas da Reverenda Madre, sua filha e também freira Christina (Louise Chevillotte) e, claro, o núncio Alfonso vivido por Lambert Wilson.
Claro que, infelizmente, para muitos, o que ficará do filme é a heresia!, a santa usada para fins impensáveis! e outros detalhes tidos de mau gosto que, como disse, são apenas as iscas para que Benedetta seja vendável e, então, a verdadeira crítica possa vir. Verhoeven sabe que, ao jogar uma rede para pegar o maior número possível de peixes, alguns sempre escaparão. Benedetta é seu mais novo puçá e um muito poderoso para quem souber olhar para além do véu chamativo que sempre foi marca do diretor.
Benedetta (Idem – França/Bélgica/Holanda, 2021)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: David Birke, Paul Verhoeven (baseado em livro de Judith C. Brown)
Elenco: Virginie Efira, Charlotte Rampling, Daphne Patakia, Lambert Wilson, Olivier Rabourdin, Clotilde Courau, David Clavel, Hervé Pierre, Louise Chevillotte, Guilaine Londez, Lauriane Riquet, Nicolas Gaspar, Eleonora Rossini, Irene Baldeschi, Elena Plonka
Duração: 131 min.