Apesar de ainda ser uma fonte de conteúdo não muito aproveitada na Era do Streaming, acho muito interessante quando um cineasta retorna para uma ou mais de suas obras originalmente lançadas no cinema para oferecer versões em forma de minissérie. Muitos até podem achar essa estratégia um sacrilégio, mas eu, mesmo sendo um defensor inveterado da experiência cinematográfica – ao mesmo tempo que adoro versões alternativas de filmes -, considero esse um caminho potencialmente fascinante para um novo olhar sobre obras consagradas. Foi assim com a versão épica de O Poderoso Chefão em que Francis Ford Coppola reuniu os dois primeiros filmes da Saga da Família Corleone, remontou-os cronologicamente e acrescentou cenas e também com o clássico alemão Das Boot. Mais recentemente e apenas por um tempo limitado no Netflix dos EUA, Quentin Tarantino voltou a seu Os Oito Odiados para oferecer uma experiência nesse formato.
Enquanto que eu jamais esperaria que um filme como Austrália, de Baz Luhrmann, ganhasse esse tratamento, seja por não ter feito uma grande bilheteria, seja por não ser um dos filmes mais apreciados do diretor, fica a pergunta: mas por que não? Afinal, é perfeitamente legítimo que um cineasta queira revisitar uma obra sua e reempacotá-la para ver se ela encontra uma nova audiência. Isso pode se dar por razões puramente comerciais, como é aliás a regra, mas, quando é o próprio diretor que arregaça as mangas, como foi o caso com Faraway Downs (o título em português, Bem-Vindos à Austrália, é mais um exemplo de preguiça mental), considero a tentativa válida e, sinceramente, creio que essa deveria ser uma tendência cada vez constante desde que, claro, não se faça como George Lucas que substituiu os originais de seus clássicos da franquia Star Wars pelas questionáveis Edições Especiais.
Austrália não é, sob qualquer medida racional, um grande filme. Ele sem dúvida tem seu valor, mas, ao mesmo tempo, ele fica em uma incômoda fronteira entre um faroeste épico passado no outback às vésperas da Segunda Guerra Mundial com uma importante abordagem sobre as tenebrosas injustiças e preconceitos do homem branco em relação aos aborígenes como pano de fundo e um filme tipicamente de Baz Luhrmann, em que o frenesi, a artificialidade e momentos que parecem próximos de um musical, tomam conta de tudo e acaba retirando a força do material. Tinha a esperança, portanto, que a versão em seis episódios com uma hora a mais de duração no total obtida a partir da reinserção de sequências que foram cortadas e o uso de um final alternativo, viesse para consertar um pouco os problemas.
E, de fato, Luhrmann conserta mesmo um pouco os problemas do longa original e a principal maneira com que ele faz isso é “des-Luhrmann-izar” a minissérie, ou seja, em retirar seus cacoetes como diretor que marcam suas obras mais famosas e em que essa sua abordagem extravagante ao extremo funciona. Apesar de a duração original da obra já ser avantajada, tudo era frenético e a montagem se perdia entre momentos contemplativos intercalados com sucessões de sequências nervosas que transformavam seu ritmo em uma montanha-russa cansativa. Com mais uma hora de material enxertado, Luhrmann dá tempo ao tempo e consegue homogeneizar a fluidez, sem arroubos enlouquecidos e trazendo mais contexto para determinadas escolhas e ações, como é a sequência estendida dos protagonistas na região mortal chamada de Kuraman ou as circunstâncias que levaram à morte de King Carney (Bryan Brown). Não que essas sequências sejam necessárias para a compreensão do longa, pois, afinal de contas, o roteiro não é lá muito complexo, mas elas contribuem para um passo único da narrativa que não precisa correr, não precisa se valer de cortes típicos do cineasta que simplesmente não combinavam com o caráter da obra original.
No entanto, ninguém deve se enganar aqui. Luhrmann não faz um novo filme, não entrega algo completamente diferente e não reinventa a roda. Ele trabalha com o que ele tinha ao seu dispor e alterando digitalmente algumas sequências, como as feições de Nicole Kidman no momento em que Carney, depois de ganhar o leilão pelo direito a uma dança com ela, novamente oferece comprar Faraway Downs. O CGI é ruim demais e só serve para distrair o espectador, mas é compreensível as escolhas, ainda que não a execução. A única grande alteração é no final que, sem dar spoilers para ninguém, foge daquele final mais Disneyficado original e entrega algo mais condizente com a premissa da obra em si. Aliás, é curioso como o filme, originalmente da Fox pré-Disney, acabou ganhando um final universalmente feliz enquanto que a minissérie, agora do Hulu/Star+ da Disney, caminha justamente na direção oposta, o que é ótimo.
Portanto, Bem-Vindos à Austrália ganha pontos por ser menos “Luhrmanniano” que Austrália, mas, naturalmente, não consegue corrigir falhas estruturais de roteiro, como na criação e desenvolvimento dos personagens que permanecem tão rasos quanto antes ou na forma como o humor é inserido. Sem dúvida há mais espaço para tudo acontecer com calma e também para o destino das crianças birraciais nas mãos de homens brancos que querem “extrair delas o lado aborígene” ser trabalhado com mais eficiência, mas tudo aquilo que “não combina” com a proposta do longa original continua não combinando em sua versão em minissérie. E não ajudou em nada que o diretor tenha encomendado uma nova trilha sonora que simplesmente tenta ser épica como o filme também tenta, mas tudo o que consegue ser é banal, mesmo que o uso de mais canções aborígenes entremeadas na narrativa seja um bônus.
Mesmo que a experiência, aqui, não seja lá tão diferente da do filme, ainda assim o esforço é válido, pois a minissérie – fazendo comparações diretas que não costumo gostar de fazer – acaba sendo marginalmente melhor do que o longa, especialmente em razão de seu final alternativo que empresta força dramática à narrativa, resultando em algo que se afasta do tom farsesco de Luhrmann. Mesmo arriscando-me de me chamarem de herege, que venham mais filmes transformados – por seus idealizadores, vejam bem! – em minissérie, pois eu adoraria ver esse tratamento dado a obras como Watchmen, O Último Samurai, Kill Bill, O Irlandês e tantos outros, inclusive com uma nova disponibilização de O Poderoso Chefão – O Épico e Das Boot.
Bem-Vindos à Austrália (Faraway Downs – Reino Unido/EUA/Austrália, 26 de novembro de 2023)
Direção: Baz Luhrmann
Roteiro: Stuart Beattie, Baz Luhrmann, Ronald Harwood, Richard Flanagan (baseado em história de Baz Luhrmann)
Elenco: Nicole Kidman, Hugh Jackman, David Wenham, Bryan Brown, Jack Thompson, David Gulpilil, Brandon Walters, David Ngoombujarra, Ben Mendelsohn, Essie Davis, Barry Otto, Kerry Walker, Sandy Gore, Ursula Yovich, Lillian Crombie, Yuen Wah, Angus Pilakui, Jacek Koman, Tony Barry, Ray Barrett, Max Cullen, Arthur Dignam, Matthew Whittet
Duração: 225 min. (seis episódios)