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Crítica | Belos Carnavais

por Michel Gutwilen
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Quando se pensa em enterros no Cinema brasileiro, dois títulos documentais de curta-metragem vêm de imediato à mente: Di Cavalcanti (1977), de Glauber Rocha, e Meu Compadre, Zé Ketti (2001), de Nelson Pereira dos Santos. Ainda que antônimos na maioria dos caminhos que seguem, o que definitivamente pode ser dito é que há um encontro de intenção entre os dois no que tange a ressignificação deste ritual da morte, enquanto momento de tristeza, em um verdadeiro momento de celebração enérgica da vida pretérita daqueles que se foram. Logo, é dentro deste referencial cinematográfico que está inserido o curta documental Belos Carnavais, de Thiago B. Mendonça, que encontra suas similaridades principalmente com o filme de Nelson, até porque ambos possuem como homenageados compositores do samba, ainda que existam também desencontros.

Enquanto em Nelson o protagonista é a roda de amigos de Zé Ketti, Mendonça escolhe ter um protagonista único, o sambista Dadinho. É a partir do seu ponto de vista que se observa a morte de seu irmão, também sambista, mas pertencente a outra escola de samba. Nos seus minutos iniciais, o filme olha para a rotina de Dadinho antes de sua chegada ao enterro, o que vai do momento em que acorda calmamente, passa pelo seu café da manhã e vai até sua trajetória ao local do enterro. Há aqui principalmente uma atenção ao ritmo, com longos planos que acompanham os gestos e passos demorados do protagonista, evidenciando através das imagens o peso da idade empregado no seu corpo. 

Neste momento, já é possível observar a meticulosa decupagem do diretor e o seu formalismo nas escolhas de plano, com duas construções de mise-en-scène que chamam a atenção. Na primeira, um plano geral de Dadinho sentado na cobertura de sua humilde casa é preenchido ao fundo pela vista de diversos arranha-céus modernos, que existem simbolicamente na imagem enquanto imagens da modernidade e de uma cidade dominada pela classe média e a especulação imobiliária. Ao novo, contrasta-se a figura de Dadinho, símbolo do passado e do samba, de origens humildes. Segundamente, há um plano geral de Dadinho andando pela rua, devagar, acompanhado de sua neta, enquanto ao fundo passa um trem em altíssima velocidade, existindo aqui novamente uma relação de contraste que realça essa relação entre o novo e o velho, como se tudo indicasse que aquele homem talvez não pertencesse mais aquele tempo ou mundo. 

Assim, o resto do filme se desenrola entre o funeral e o enterro do irmão de Dadinho, com algumas observações podendo ser feitas sobre essas sequências. Tal como em Meu Compadre, Zé Ketti, o ato de cantar as músicas do falecido existe como uma forma de expressão um tanto quanto espiritual de preencher o vazio deixado por ele e “trazê-lo de volta à vida”, fazendo com que sua presença seja sentida como uma energia contínua pelos corpos daqueles seus amigos que prestam suas homenagens. No entanto, existe uma diferença procedimental entre Nelson Pereira e Thiago Mendonça que parece afastar as duas execuções, ainda que de mesmas intenções. 

De um lado, Nelson prezava por uma câmera fluída em sua movimentação e que se inseria naturalmente dentro daquele espaço de homenagem, ao mesmo tempo que cortava pouco os planos e passeava pela cantoria ininterruptamente, transitando de corpo a corpo. Do outro, Mendonça é o oposto: sua decupagem é de um calculismo que ordena os corpos no plano plasticamente como bonecos; sua posição é de afastamento ao filmar o evento de longe (a câmera parece estar em um segundo andar), como se fosse um observador superior; há muitos cortes que anulam o senso daquelas pessoas serem um só organismo; além de elipses que diminuem o impacto imagético das diferentes cores de escolas chegando no funeral. 

Não há problema nestas escolhas de mise-en-scène a priori, mas todas elas parecem jogar contra a ideia vigente de criar uma musicalidade no funeral e retratá-lo humanisticamente como uma oportunidade de celebração da vida. Afinal, ao privilegiar a forma rigorosa da encenação em detrimento de um verdadeiro olhar que sente aqueles corpos, fica parecendo que as preocupações do diretor residem mais em um esteticismo de achar “enquadramentos bonitos”, ao invés de construir uma atmosfera sincera. Samba é calor humano, é movimento, alegria contagiante e aproximativo, mas a mise-en-scène do filme está mais para uma ópera vista de um anfiteatro. 

Igualmente ao formalismo em sua encenação, observo que Belos Carnavais é um filme que também possui um calculismo em sua narrativa enquanto documentário, parecendo transformar as pessoas reais filmadas em atores que interpretam eles mesmos. Sem dar muitas respostas diretas sobre o passado de Dadinho, seu irmão e Maria Helena Tom, Mendonça fornece algumas peças deste quebra-cabeça do passado implicitamente através da mise-en-scène. Isso se dá principalmente a partir do peso que carrega a presença de Dadinho e Maria Helena Tom contracenando no mesmo plano, com a existência de uma tensão que obviamente indica uma história passada de amor e mágoas. De mesmo modo, existe por todo o funeral um sentimento de “trégua”, como se ficasse clara a existência de uma rivalidade histórica entre todas aquelas pessoas, mas que é deixada de lado neste momento. 

A questão é que como consequência desta busca por uma narrativa implícita e uma “ficcionalização” do documental há uma espécie de efeito no qual o meio parece se tornar um fim em si mesmo, com Mendonça parecendo mais entretido em fornecer um jogo de pistas implícitas através das imagens e criar dramatizações a partir das possibilidades de encenação do que verdadeiramente entrar no mundo daquelas pessoas. 

Por outro lado, não há como negar que existem reflexos políticos a partir das imagens em Belos Carnavais. Ainda que não tão eficiente na sua construção da atmosfera durante o funeral, existe um poder muito forte gerado na imagem de todos aqueles sambistas, negros e idosos, reunidos juntos, superando suas diferentes bandeiras. Obviamente, há um sentido identitário aqui, do funeral enquanto um espaço de resistência, tanto do samba quanto do povo negro, como se fosse um último espaço no meio daquela cidade gentrififcada que se viu no início do curta, ao fundo da laje de Dadinho. Em um final radicalmente diferente de Meu Compadre, Zé Ketti, feito há 20 anos atrás, o otimismo de que o samba viveria eternamente parece ter sido trocado pelo pessimismo de que talvez estejamos vivendo seus últimos momentos. O passado não volta.

Belos Carnavais (Brasil, 2021)
Direção: Thiago B. Mendonça
Roteiro: Thiago B. Mendonça
Elenco: Dadinho, Maria Helena Tom
Duração: 16 mins.

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