Existe um problema recorrente com as narrativas cinematográficas que adotam o critério de “crônica de uma vida” em roteiros sobre eventos históricos densos e complexos. A alma biográfica ou ‘ficcionalizada’ de uma obra assim acaba trazendo uma quantidade muito grande de floreios, um compreensível (mas problemático) medo de ser mal interpretado e uma direção que, ao unir tudo isso, tende a deixar essas produções contraditórias, normalmente muito bem cuidadas visualmente, mas essencialmente vazias em seu conteúdo: pretende-se falar de muita coisa e ao mesmo tempo desviar-se de todos os espinhos possíveis no meio do caminho. O resultado disso é um “filme morde-e-assopra” que não consegue verdadeiramente se decidir, como este Belfast, escrito e dirigido por Kenneth Branagh, que traz para a grande tela as suas memórias de infância sobre os conflitos na Irlanda do Norte na década de 1960.
Chamamos de The Troubles o período que vai de 1966 (se você considerar a criação da Força Voluntária de Ulster, mas vale dizer que existem outros limites históricos tomados como “início” do período, tanto em 1968 quanto em 1969) até o ano de 1998, na Irlanda do Norte, onde vemos as sementes conflituosas plantadas ainda no início do século XVII florescerem em violentos enfrentamentos entre protestantes (maioria da população) que era a favor de preservar os laços com a Grã-Bretanha e católicos (minoria da população), que era a favor da independência do país ou da integração da província com a República da Irlanda. Não foi, portanto, um conflito unicamente religioso. Na verdade, o elemento religioso era a ponta de um iceberg de disputas políticas e de soberania territorial que já vinha de muito tempo. Branagh começa a sua narrativa em meio a esse contexto histórico, mais precisamente em 15 de agosto de 1969, onde vemos o alter ego do diretor (Buddy, interpretado de maneira incrível por Jude Hill) brincando com outras crianças numa rua perto de casa.
Seguindo a proposta de um roteiro muito pessoal que não quer falar de temas sobre os quais não tem vivência (ou seja, o lado dos católicos no conflito) o caminho de Branagh é pavimentado pela junção de narrativas familiares, pelo destaque do olhar de Buddy para tudo o que acontece e pela força do evento histórico que vai moldando os personagens, forçando-os a determinadas escolhas e abrindo ou fechando portas para inúmeros sonhos de vida. Nesse processo, ganhamos de presente cenas deliciosas onde o diretor adiciona ingredientes daquilo que formariam a sua persona artística no futuro, como o fato de ter ganhado uma cópia de A Noite das Bruxas, de Agatha Christie, de presente de Natal; de ser um leitor dos quadrinhos de Thor; de ficar espantado com o poder do teatro, assistindo a uma montagem de Uma Canção de Natal; ou de fugir dos problemas da vida e mergulhar na magia do cinema (através da TV ou da grande tela), garantindo ótimos momentos com a exibição de Matar ou Morrer (1952), O Homem que Matou o Facínora (1962), Mil Séculos Antes de Cristo (1966) e O Calhambeque Mágico (1968). São momentos em que até o uso da cor, em meio ao preto e branco, reforça o sentimento de viagem no mundo dos sonhos que o cinema proporciona, retirando as pessoas de uma difícil situação e levando-as temporariamente para um lugar onde esses problemas não existem.
Esse olhar infantil vai pouco a pouco diminuindo o peso de algo tão sério quanto o The Troubles, distanciando o roteiro de seu pano de fundo e tornando-o cada vez mais centrado em um drama familiar ou numa história de amadurecimento de um menino, aqui e ali permeado pelo desenrolar do conflito que sai de atenção principal para uma atenção secundária. Nem mesmo a montagem, que martela o evento através dos noticiários de TV; ou o próprio desenho de produção, na maneira como a rua do protagonista passa a ser organizada, conseguem fazer o filme voltar ao status de “obra sobre uma criança vivendo em meio a um grande conflito“. Uma vez distanciado problema histórico, o roteiro de Branagh não consegue voltar satisfatoriamente para ele, e vai apenas segmentando a fita em pequenas ações onde os adultos ensinam coisas importantes para o pequeno Buddy (nesse sentido, o enredo se torna uma coleção de parábolas sábias de avós e pais, com lições morais, sentimentais e comportamentais que marcariam para sempre essa criança) e onde o próprio Buddy procura viver as suas aventuras, da paixonite em sala de aula, às brincadeiras que gosta e aos problemas nos quais se mete, voluntária ou involuntariamente.
A estrutura narrativa do filme, portanto, parte de um princípio que só combinaria bem com um desenvolvimento mais leve, mais lírico, um tanto cômico e um tanto fofo se o filme se propusesse a isso desde o início (o que não é o caso), algo que poderia funcionar muito bem: Jojo Rabbit está aí para provar. E vejam, eu não sou do time que defende que todo olhar ou experiências infantis em uma guerra devam ser retratados no cinema tal e qual as duríssimas experiências de O Pássaro Pintado, A Infância de Ivan ou Vá e Veja, todas elas, ótimas e lancinantes representações que mostram com crueza o que a violência cotidiana e sistematizada pode fazer a uma criança e como ela é vista pelo olhar de um indivíduo em tenra idade. Mas ora, filmes como Império do Sol, Adeus, Meninos e Esperança e Glória conseguiram mostrar um grande conflito de maneira louvável através do olhar de uma criança, com direito a um bom número de delicadezas e componentes de memória, de amadurecimento e de descobertas dos garotos em cada película. Em Belfast, o olhar delicado é apenas a porta aberta para o empobrecimento de toda a carga forte de uma guerra civil, o que, por tabela, tem reflexos em outros aspectos da fita, para além do roteiro.
O bom elenco é um exemplo disso. Existem esforços e emoções que, num aspecto puramente dramatúrgico, podem ser considerados como “carregadores do filme nas costas“, mas chega um momento da projeção em que nem as atuações conseguem alguma coisa. A maneira como cada bloco de adultos e de seus problemas é encadeado, a costura desses problemas com a vida de Buddy e a abordagem visual para tudo isso, numa cidade que parece ter apenas cinco ruas e com um dos piores usos de trilha sonora que eu já vi em toda a minha vida, coroam os problemas de Belfast. É válido dizer que o uso e abuso das canções de Van Morrison não é um problema em si. O problema é que são colocadas em cenas que não precisavam delas; que precisavam de silêncio ou de algo apenas orquestral, que não forçasse um sentimento específico no espectador. Aliás, inúmeras cenas desse filme são completamente estragadas em sua carga sentimental/dramática pela entrada aleatória de um saxofone ou de uma canção que ganha ares descritivos, com uma forte e didática narrativa adicional para algo que não precisava de nada disso.
A beleza de Belfast parece ser a única coisa que se sustenta em qualidade do começo ao fim. Mesmo clamando por um melhor uso de sombras e de contraste em preto e branco na fotografia do cipriota Haris Zambarloukos (parceiro de longa data do diretor), vejo-a como o setor técnico que melhor consegue sustentar suas escolhas. Belfast é o primo pobre de Roma (2018), dois filmes de reminiscências com grande foco num espaço geográfico, seus habitantes e em conflitos que moldam as ações e o destino de muitos desses indivíduos. A diferença entre os dois está primeiramente na estética, que é impecável em Roma e apenas boa em Belfast, e na forma de dar sentido e foco àquilo que está sendo contado. Embora Alfonso Cuarón apenas ensaie fazer isso em seu longa, Kenneth Branagh nem se dá o trabalho de tentar o mesmo em Belfast, crendo piamente que as belas frases de efeito do elenco adulto, a tocante presença de Jude Hill, a reflexão sobre a força da História tirando escolhas ou apresentando novos destinos para as pessoas e um bolsão de sentimento a cada bloco de 20 minutos seriam o bastante para conseguir convencer o público. Até o momento em que escrevo esta crítica (13 de março de 2022), a única coisa grandiosa que este filme apresentou foi a campanha de marketing, que de maneira milagrosa abocanhou sete indicações ao Oscar. O restante é um pacote vazio vendido como um belo pacote nostálgico.
Belfast (Reino Unido, 2021)
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Kenneth Branagh
Elenco: Jude Hill, Lewis McAskie, Caitriona Balfe, Jamie Dornan, Judi Dench, Ciarán Hinds, Josie Walker, Freya Yates, Nessa Eriksson, Máiréad Tyers, Caolan McCarthy, Ian Dunnett Jnr, Michael Maloney, Lara McDonnell, Chris McCurry, Drew Dillon
Duração: 98 min.