É curioso notar que, no mesmo mês em que a terceira e última edição de Batman: Último Cavaleiro da Terra era publicada pela DC Comics sob seu selo adulto do momento, o DC Black Label, a primeira de Mulher-Maravilha: Terra Morta, era lançada pelo mesmo selo. O aspecto curioso é que as duas histórias têm a mesma estrutura que lida com um mundo pós-apocalíptico sem super-heróis em que os respectivos protagonistas acordam anos depois sem ter memória do que aconteceu, precisam liderar os sobreviventes para a salvação e, de quebra, tentar reverter o quadro catastrófico. E isso sem contar com as coincidências de diversos desenvolvimentos e sub-tramas, inclusive e especialmente a resolução em si das narrativas – que não revelarei, fiquem tranquilos! – que são tematicamente muito parecidas. Coincidência? Provavelmente, mas, mesmo assim, é algo de se coçar o queixo imaginando se Scott Snyder e Daniel Warren Johnson não conversaram sobre o assunto entre uma cerveja e outra antes de saírem escrevendo as histórias.
Em termos de sinopse, o que descrevi acima já basta, talvez acrescentando que a narrativa começa em Gotham City no presente, no que parece ser a última missão do Batman como o conhecemos, somente para a narrativa pular temporalmente com o uso de um artifício interessante e bem construído que trata Bruce Wayne – misteriosamente jovem – como um louco internado no Asilo Arkham e, logo, em seguida, com ele andamento pelas terras devastadas carregando a cabeça falante do Coringa em uma jarra no estilo Futurama. Estranho? Certamente. Chamativo? Certamente também.
Confesso que essa nova dupla dinâmica – “Posso ser o Robin agora? E agora?” – é o que de mais diferente e interessante há na graphic novel e eu não duvidaria se Snyder um dia confessasse que partiu dessa ideia para desenvolver o restante ao redor desse pareamento surreal. Há uma morbidez inescapável em ver um Batman com camisa de força de Arkham e uma máscara de morcego feita para tratamento de choque conversando com a cabeça do Coringa que, por incrível que pareça, lhe dá conselhos sábios e, dentro dessa história, lógicos. E esses diálogos são também divertidos, assim como a evolução desse… digamos… relacionamento a ponto de ser possível afirmar muito tranquilamente que, se Último Cavaleiro da Terra, se resumisse a isso, a história seria potencialmente melhor.
Mas não é o que acontece, claro, com todo o restante sendo Snyder fazendo seu dever de casa e ticando todo o formulário padrão de “referências” à mitologia do Batman, inclusive e algumas vezes especialmente a que ele próprio desenvolvera com Greg Capullo sobre a Corte das Corujas. Não que o leitor precise ter conhecimento sobre os detalhes para aproveitar a história, pois o texto faz um bom trabalho de contextualização sem precisar recorrer a flashbacks, pelo que a graphic novel é substancialmente auto-contida, passando-se em um Elseworlds da vida, logicamente. No entanto, ao privilegiar essas referências, o que inclui personagens muito familiares aparecendo de tempos em tempos para engrossar o elenco, Snyder faz a história inchar, retirando o espaço para um desenvolvimento cadenciado para o próprio Bruce Wayne.
Basta notar, em termos comparativos, a parcela generosa e muito bem construída que o roteiro dedica ao preâmbulo que vai do começo da HQ até o momento em que Batman começa a caminhar pelo mundo pós-apocalíptico com a forma puramente expositiva, repleta de intermináveis explicações didáticas, como ele aprende sobre o que aconteceu nos últimos 20 anos, quem exatamente é ele e, mais ainda, quem é o grande vilão da história toda, misteriosamente batizado de Omega. A identidade do personagem não é uma grande surpresa para quem estiver prestando atenção e tem boa lógica interna, mas não há desenvolvimento suficiente para realmente justificar o porquê de tudo acontecer. Se a suposta reviravolta sobre Omega era tão importante, então que Snyder tivesse empregado mais esforço para entregar a Capullo as oportunidades para ele trabalhar visualmente o ocorrido. Mas não. O roteirista quase coloca o “grande momento divisor de águas” no passado longínquo como uma nota de pé de página que alguém que estiver lendo de bobeira é capaz de deixar passar.
Por outro lado, mesmo que a Capullo não tenha sido dada essa chance, o artista não desaponta em seu belo trabalho em parceria com a arte-finalização de Jonathan Glapion e as cores de FCO Plascencia. Muito longe disso, aliás, ele se mostra extremamente afiado, não só criando belos novos visuais para personagens queridos, como também trabalhando profusamente na composição complexa de quadros, não deixando espaços vazios sem assim ele querer, mas não chegando ao tumulto visual que um Jim Lee da vida acaba derramando nas páginas. Seu Bruce Wayne “desgarrado no tempo” é fascinante de início, assim como, claro, o Coringa na jarra, além do imponente Omega que vemos mais para a frente em um interessante uniforme híbrido de morcego e coruja. Igualmente, a progressão da narrativa é facilidade sobremaneira pela arte que só falha mesmo por culpa exclusiva de Snyder e sua maneira equivocada de manter segredos ou falar sem mostrar que irrita por diversas vezes.
Com isso, Batman: Último Cavaleiro da Terra mostra-se certamente intrigante na proposta, mas cambaleante no desenvolvimento, ainda que a arte deslumbre e a nova dupla dinâmica mereça um spin-off só dela um dia. Batman pode não ter ganhado sua melhor história pós-apocalíptica, mas ela com certeza merece a leitura nem que seja pelo visual, pela vontade de confirmar se sua dedução sobre a identidade de Omega está correta (e ela estará, tenho certeza) ou, principalmente, para ver Bruce e Coringa formando o melhor dueto da batfamília em muito tempo.
Batman: Último Cavaleiro da Terra (Batman: Last Knight on Earth, EUA – 2019)
Contendo: Batman: Último Cavaleiro da Terra #1 a 3
Roteiro: Scott Snyder
Arte: Greg Capullo
Arte-final: Jonathan Glapion
Cores: FCO Plascencia
Letras: Tom Napolitano
Capas: Greg Capullo, FCO Plascencia
Editoria: Amedeo Turturro, Mark Doyle
Editora: DC Comics (DC Black Label)
Data original de publicação: maio, julho e dezembro de 2019
Editora no Brasil: Editora Panini
Data de publicação no Brasil: março a maio de 2020
Páginas: 180