A porta que Frank Miller abriu com Batman: Ano Um gerou e continua gerando muitos frutos dentro do conceito de “começo de carreira de Batman”. Os mais comumente citados exemplos são as incríveis obras de Jeph Loeb, O Último Halloween e Vitória Sombria, que desenvolveram perfeitamente os conceitos introduzidos por Miller em um de seus mais famosos retcons (o outro é o do Demolidor, que ele basicamente fez em três momentos, o primeiro em dupla com Klaus Janson, o segundo no clássico A Queda de Murdock e, o terceiro, na minissérie O Homem Sem Medo), publicadas, respectivamente, entre 1995 e 1996 e 1999 e 2000. Mas há outros vários exemplos e um dos mais memoráveis é relativamente recente, de 2005, pelas hábeis mãos de Matt Wagner, criador de Mage (Image) e Grendel (Dark Horse).
Trata-se de Batman e os Homens-Monstro, minissérie em seis edições mensais publicadas entre novembro de 2005 e abril de 2006 com parte de um arco maior de Wagner chamado de Dark Moon Rising e que continuaria – e seria encerrado – com Batman e o Monge Louco. O título pode afastar muita gente da leitura, pois deduzirão que é uma história boba, fantástica demais para a realidade atual mais sombria do Homem Morcego. E, de fato, faz sentido. Mas o título, apesar de não ser nada criativo, pois basicamente descreve o coração da trama, é muito apropriado dentro do conceito que Wagner quis imprimir à sua mini: a de uma publicação no estilo pulp, dos anos 40. E ela é muito mais densa do que o título dá a entender e definitivamente merece figurar na prateleira de honra dos fãs de Batman.
Cronologicamente se passando entre Ano Um e O Homem que Ri, de Ed Brubaker, Matt Wagner pega emprestado a introdução do vilão Hugo Strange, ocorrida em Detective Comics #36, de 1940 e a refaz completamente, tornando Batman e os Homens-Monstro a primeira aparição de Strange no que se refere ao Batman modernizado de Frank Miller. Mas Wagner é inteligente e não só não descarta o original (apenas o atualiza para os preceitos do Batman moderno) como faz uma bela homenagem.
A história é muito rica e divide-se em várias narrativas, cada uma com seu narrador próprio, o que às vezes é confuso, mas nada que gere muitos problemas. Temos, obviamente, a ponto-de-vista de Batman/Bruce Wayne em sua incansável perseguição a Sal Marone, um dos homens mais importantes do mafioso Carmine Falcone. Há, também, o olhar de admiradora de Julie Madison, rica filha do industrial Norman Madison e estudante de Direito que namora Bruce Wayne (trazida de volta à cronologia de Batman depois de sua aparição na primeira fase do herói, ainda em 1939). Seu pai, Norman, é outro narrador da trama, com sua decadência depois que se envolve profundamente com Marone. O último ponto-de-vista é o do próprio Strange, que aparece logo na terceira e brilhante página do primeiro número, em silhueta, como se fosse Bruce Wayne, somente para a imagem dele, iluminada, nos revelar que ele não é tão geneticamente “bem dotado” quanto Bruce.
Assim, a narrativa trabalha quatro vertentes paralelas que, claro, se tangenciam ao final, no grande e bombástico encerramento. Vemos a investigação de Batman em relação a Marone e, de quebra, seu complicado relacionamento com Jim Gordon que usa os “serviços” do herói apesar de ele ser um procurado da polícia; o pedido de empréstimo que Nornan Madison faz à Marone, ficando em sua mão, o que o faz ficar desesperado, com medo que algo aconteça à sua filha; a relação de Strange com Marone, que financia, sem saber, os experimentos imorais de melhoria genética do professor e, finalmente, o namoro de Bruce e Julie, que é tratado como algo sério até mesmo por Wayne, que parece genuinamente apaixonado pela moça.
Mas lembrem-se: trata-se de uma versão jovem e otimista de Bruce Wayne. Ele realmente acha que, acabando com Marone e, por tabela, Falcone, poderá livrar Gotham de todos os males. Ele chega a afirmar isso logo no início, quando tem sucesso em uma missão que liga um carregamento de heroína com Marone/Falcone. No entanto, Wagner logo tira essa esperança de Batman ao introduzir, pela primeira vez nessa linha cronológica do Batman “pós-Crise”, elementos fantásticos encapsulados nos tais Homens-Monstro criados por Hugo Strange como efeitos colaterais indesejáveis de suas experimentações ilegais.
Matt Wagner tem diversas qualidades, mas a que mais me chamou atenção foi sua capacidade de cadenciar os acontecimentos. Ao longo das seis edições, o que vemos é um trabalho equilibrado entre investigação, drama, romance e ação sem sobreposição de um sobre o outro e sempre com a preocupação de tornar todos os eventos relevantes para a história como um todo. É como um diretor de cinema cuidadoso, que sabe que, em seu espaço e tempo limitados, precisa tornar tudo relevante.
E relevância parece ser o lema do autor em Batman e os Homens-Monstro, pois ele se preocupa em dar personalidade a cada um dos personagens “novos”, primeiro como se nunca houvéssemos falado deles e, segundo, criando suas próprias qualidades que não ferem o material original, mas dão uma repaginada completa e merecida. Julie Madison não é uma menina inocente, mas sim uma jovem de forte personalidade, inteligente e que sabe o que quer. Bruce não faz dela gato e sapato, ao contrário até, pois a impressão que dá é que ela está em controle. Hugo Strange também não é unidimensional, raso, como os vilões de outrora. Ele é um cientista em primeiro lugar. Mas um cientista cuja visão do que é moral foi seriamente alterada, provavelmente, por anos de bullying por sua aparência que o fizeram ficar obcecado com a perfeição genética, algo que ele vê em Batman e que só aumenta sua inveja latente.
Além disso, Wagner trabalha muito bem os eventos, ligando-os sem muito esforço, ainda que ele tenha que tomar alguns atalhos, como quando ele nada explica sobre a súbita dependênca de Norman de empréstimos de Marone ou quando facilita as ações de Strange usando a figura de seu assistente Sanjay como um faz-tudo particularmente eficiente em localizar mafiosos. Mas esses atalhos imprimem velocidade à trama, permitindo sua costura em apenas seis números.
Mas Matt Wagner é também o responsável pela arte. E que arte! De certa forma, ele tenta manter o estilo de Ano Um, mas não se furta em deixar suas próprias marcas, desenhando um Batman imponente, uma Julie nem sempre “apenas” linda, mas constantemente de presença memorável e um Hugo Strange aterrador em seu tamanho diminuto e rosto maquiavélico. E o background nunca é esquecido por Wagner, apesar de ele não se esmerar nos detalhes. Vemos o que precisamos ver para não nos perdermos no deslumbramento e, com isso, focarmos no que é mais importante: o desenvolvimento dos personagens. É o tipo de desenho agradável de se apreciar por vezes seguidas.
A mina do começo de carreira de Batman é profunda e Homens-Monstro é um dos grandes exemplos do tipo de preciosidade que pode sair lá.
Batman e os Homens-Monstro (Batman & the Monster Men, EUA – 2005/2006)
Roteiro: Matt Wagner
Arte: Matt Wagner
Cores: Dave Stewart
Editora: DC Comics (de novembro de 2005 a abril de 2006)
Páginas: 21 (cada edição)