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Crítica | Batman (Com Spoilers)

A desconstrução do caráter sombrio do Cavaleiro das Trevas.

por Iann Jeliel
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Batman

  • Confira aqui a versão sem spoilers.

Confesso que minhas expectativas para Batman tinham um misto de sentimentos que tem sido cada vez mais comuns a cada novo filme de super-herói lançado. Há um claro superfaturamento do “gênero” que domina as redes de cinema e as discussões da sétima arte atualmente. Em se tratando de Batman, esta é a terceira versão do herói vista nas telas em um  espaço de menos de dez anos, sem contar as outras mídias (animações e séries de TV) e o histórico longínquo de adaptações do principal herói da Detective Comics. O que podia ser entregue que já não foi visto antes? Por mais contraditório que pareça, a resposta é: muita coisa. Não só pela riqueza consumada de abordagens possíveis de se imaginar o universo do vigilante de Gotham, mas por conta dos contextos históricos/cinematográficos e sociais que circundam e acabam participando deste particular projeto encabeçado pelo cineasta Matt Reeves.

Estamos no meio da passagem de um provável revisionismo formal dos filmes de super-herói, bem semelhante ao que aconteceu com os faroestes nos anos 60 e 70, com filmes como O Homem Que Matou o Facínora (1962), Meu Ódio Será Sua Herança (1970), dentre outros. Ou seja, apesar de ainda estarmos no auge do consumo dessas produções, começa-se a criar uma mentalidade mais questionadora das convenções estabelecidas para se ter um blockbuster de sucesso e um cenário que estimula a invasão do “cinema de autor”, para subverter essas convenções na prática. Começou com Deadpool e Logan a vontade de entregar filmes de super-herói adultos para depois, se refletir numa Marvel ciente do próprio cansaço de sua fórmula, tentando entregar filmes diferentes – como Pantera Negra, Viúva Negra e Eternos (apesar das contestações de qualidade para eles, é inegável que, no modelo de produção Disney, são os filmes que dão mais liberdade para seus cineastas trabalharem ideias fora do encaixe que Kevin Feige procurava quando os contatava) – e fez a DC abdicar do formato de Universo Compartilhado para focar em contar histórias isoladas, a ponto de desistir do Batman interpretado por Ben Affleck e recomeçar do “zero” com esse de Robert Pattinson.

Contudo, Batman não só se beneficia desse estímulo à liberdade de um grande autor de blockbuster em dar a sua visão a um  personagem e trazer um filme diferente no espectro do gênero, como também – graças a essa liberdade – compreende a representatividade iconográfica que o personagem tem para o mundo, utilizando-a como vitrine para reflexões políticas e sociais do momento. Até aí, nada de novo, porque cada história do Batman inevitavelmente carrega o reflexo do que ele significa nesse tempo. Mas no mundo do “pós-verdade”, a essência naturalmente sombria do homem-morcego adquirida a partir de Tim Burton (nos cinemas) e reforçada pelo realismo exacerbado de Christopher Nolan, foi deturpada por uma mentalidade geek conservadora que passou a enxergar o herói como um símbolo do vigilantismo reacionário. Visão essa alimentada pelo Batman armamentista de Zack Snyder, que interpretou a fase moralmente ambígua dos quadrinhos de Frank Miller, como se fosse pretexto de heroísmo.

Batman

Não imagino que Matt Reeves tenha pensado em fazer uma oposição direta a esta visão, mas certamente, antes de assumir a direção, ele observou bem como as pessoas estavam enxergando o personagem. Até porque, nos primeiros minutos onde vemos a aparição do Batman, o diretor executa (com muito mais competência) uma sequência semelhante em intenções á aquela introdução do personagem em Batman vs Superman – A Origem da Justiça: apavora a presença fantasmagórica desse homem mascarado fazendo justiça com as próprias mãos e escondido nas sombras. Com toda a experiência adquirida no terror em Cloverfield e Deixe-me Entrar, Reeves, em condução cadenciosa, utiliza essa cena como pretexto de criação da atmosfera sombria do suspense noir/policial que permeia o foco narrativo, mas também planta, de modo orgânico (considerando a mentalidade do público observada), essa semente motivacional do combate ao crime baseada no revanchismo – “eu sou a vingança” –, averiguada naquele momento pelo caráter aparentemente ainda mais sombrio dessa versão do personagem, para que ela possa ser ressignificada à medida em que se investiga  as origens do pensamento do protagonista.

Isso faz muito sentido, afinal, apesar de estar em atividade por dois anos, esse Batman ainda está em processo de aprendizado. A escolha do recorte temporal é muito feliz nessa lógica. Escolher contar o “Ano 2” é pular o processo costumeiramente mastigado de um filme de origem, sem necessariamente desistir de contá-la. Não temos a cena Thomas (Luke Roberts) e Martha Wayne (Stella Stocker) sendo assassinados no beco, mas não precisamos ver para sentirmos o peso melancólico carregado no olhar e vocal de Bruce – adorei a abordagem dos diários narrados em off, a partir de sua perspectiva. Pena que isso só ocorra no início e final do filme –, do quanto esse evento lhe gerou cicatrizes profundas, externalizadas no vestir do manto. Isso lhe dá um caráter bastante vulnerável, desconstruindo um pouco dessa imagem sisuda dele como “imponente”, levando-a para um lado mais introspectivo, até mesmo melancólico e perfeitamente capturado na performance de poucas falas de Pattinson. Percebam como há muito pouco de Bruce Wayne no filme, e quando vemos sua caracterização, não notamos uma diferença tão grande da postura com a roupa. Não à toa: o personagem Batman ainda não se separou dos anseios do jovem traumatizado por trás da máscara – isso fica exemplificado em como ele sai de moto pela cidade, sem estar vestido na armadura.

O Charada (Paul Dano), como todo bom vilão, aparece nesse contexto como uma antítese, um reflexo e uma consequência do efeito simbólico do Batman na “semi-gótica” e “semi-moderna” Gotham. Aquele discurso vingativo e violento do morcego para pavimentar medo aos criminosos e supostamente “controlá-los”, mostrado no início, acaba sendo o responsável por criar o letal antagonista. Inspirá-lo como jovem órfão igualmente recluso a reproduzir a vingança e imposição do medo à sua maneira psicótica contra o sistema corrupto/criminoso comandado por homens poderosos que o abandonaram, incluindo nesse bolo o próprio Thomas Wayne, consequentemente colocando Batman/Bruce em seu radar, tornando o embate entre herói/vilão com um caráter supostamente, cada vez mais pessoal. Essa pessoalidade incerta (não sabemos até onde o Charada tem conhecimento da coexistência do herói e seu alter-ego) não só gera tensão constante sobre seus próximos movimentos – os caprichados enigmas que exigem a exploração completa desse lado mais detetivesco do herói (que ainda não tínhamos visto direito em live-action), trazem um sentimento de que o vilão sempre está um passo à frente – como é fundamental para a virada no estudo de personagem iniciado a partir da revelação dos podres da família Wayne.

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Quebra-se aquela fé inabalável do protagonista nos valores daqueles que o inspiraram: Sua avó matou seu avô por desequilíbrio emocional; sua mãe ao tornar-se órfã também ficou desequilibrada emocionalmente, – ele percebe que é um órfão quebrado que nem a mãe por conta de uma tragédia – a ponto de ser colocada no Asilo Arkham; seu pai, para proteger a imagem da família durante sua campanha como prefeito, se envolveu com o mafioso Falcone (John Turturo) e o pediu para impor medo num repórter que estava querendo revelar esses acontecimentos para a mídia, acarretando na morte do tal jornalista. A teia de descobertas familiares desperta uma responsabilidade autocrítica nas suas motivações egocêntricas durante a história. Há uma transformação do seu olhar sobre a paternidade, por exemplo, fornecendo a “origem” da parceria dele com Alfred (Andy Serkins) que interfere pouco no processo investigativo – essa função vai para o ótimo buddy-cop dele com James Gordon (Jeffrey Wright) –, mas ainda é essencial como figura de mentor, como demonstra a linda cena de aproximação no hospital. Além disso, surge uma sensibilização do personagem sobre as pessoas em seu entorno, e por consequência, o roteiro ganha brechas para encaixar e/ou retomar comentários socialmente relevantes inseridos anteriormente, enriquecendo essa leitura progressivamente desconstrutiva.

Durante a sequência do velório do prefeito (Rupert Penry-Jones) assassinado – aliás, outra excelente cena de filme de terror, a que mostra sua mostra morte –, a candidata a prefeita (detalhe: mulher negra) Bella Reál (Jayme Lawson), questiona o porquê de Bruce Wayne não utilizar seu poderio financeiro para fazer ações sociais que ajudassem transformar Gotham em um lugar melhor. Um questionamento colocado antes por Alfred e pincelado posteriormente por Selina Kyle (Zoë Kravitz). Ou seja, não é gratuito. É sintomático, um ponto-chave para o surgimento dessa sensibilização refletida em ações heróicas no clímax. A própria visão da obra sobre a Mulher-Gato é, pela primeira vez, um retrato humano de sua sensualidade, sem fetichismos escancarados. A vulnerabilidade de um início de carreira, bem como a do Batman, ajuda a tornar essa veia feminista dela ainda mais crível para essa história. Mesmo com o constante reforço dado pelo texto de que ela consegue se virar sozinha, a personagem cumpre um papel fundamental para catapultar a sensibilização do herói, processo criado a partir de sua tensão sexual com ele, reverberada num romance com construção imagética vinda da era clássica hollywoodiana – a incisividade da trilha, no momento do beijo.

A escolha dessa abordagem não é arbitrária. Diferente de outras versões do herói em que o Bruce Wayne/Batman era tratado como um playboy mulherengo, nessa, ao que tudo indica, ele escolheu uma vida tão reclusa que parece que Selina foi o seu primeiro caso romântico na vida. Nisso é plausível que ele recue humildemente dos julgamentos que faz sobre a escolha da vida de criminalidade (mesmo que por sobrevivência) quando descobre que ela é filha de Falcone. Tematicamente, esse dilema de cada paternidade une os dois, mas a moral de como reagir a isso pavimenta o clássico “romance impossível” de Romeu & Julieta, Titanic e afins. A Mulher-Gato tinha todos os motivos para querer matar o pai, assim como o Batman, afinal, descobrimos que foi Carmine quem matou os Wayne porque descobriu que Thomas queria se entregar e delatá-lo por ter matado o repórter. Matando-o, Carmine teria a cidade para si, resolvendo dois problemas de uma vez só. Contudo, justamente por essa descoberta de que, mesmo sujando as mãos, a moral de Thomas buscou fazer a coisa certa no final, Bruce/Batman reafirma o seu próprio valor de não matar, de fazer do vigilantismo um auxílio às entidades da lei, mesmo que praticamente todas (à exceção de Gordon e sua turminha) sejam corruptas nas origens do sistema; e é isso que faz os personagens irem em direções opostas com a moto, na última cena.

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Gosto muito de todas essas conexões propostas entre os personagens e acho devidamente surpreendente como a figura de Carmine rouba o antagonismo principal (me arrisco a dizer John Torturo está num dos melhores papéis de sua carreira) no falso clímax em que a Mulher-Gato vai tentar matá-lo e o Batman tenta impedi-la. Tanto que o verdadeiro clímax, a resolução do Charada, soa demasiadamente extensa na pretensão de Matt Reeves em entregar uma ação de maior escala, já que o foco até então era muito mais no suspense e pontuais cenas de pancadaria. Dá para dizer que há uma queda considerável no ritmo e, em razão disso, é sentido o peso da duração de quase 3 horas. Poderia dizer que podia cortar 20 ou 30 minutos. Especialmente por conta daquela cena do interrogatório com o Charada, que tinha tudo para ser muito boa, mas se tornou uma réplica sem impacto daquela do Nolan entre o Batman (Christian Bale) e o Coringa (Heath Ledger). Inclusive, é reducionista a figura ameaçadora que é o Charada no filme todo, colocando-o na prateleira da psicopatia delinquente e caótica igual à do Coringa e distante da malemolência inteligente de um metódico serial killer

Contudo, acabo vendo esse prolongamento como necessário para a grandiloquência desse terceiro ato mostrar o tamanho das consequências a serem arcadas pelo Batman por conta do símbolo de vingança que queria passar. Inclusive, ele meio que “perde” para o Charada quando seu plano de inundar Gotham dá certo, mas volta a ganhar quando se dispõe a estender a mão para ajudar as pessoas, fazê-las abandonar o temor do mito que estava espalhando. Ele suja a roupa de lama para abandonar o arquétipo de privilegiado que lhe foi questionado. Além de tudo, esse clímax também funciona no aspecto visual. Há uma computação gráfica escancarada, mas bem administrada na decupagem do tom realístico meio moderado adotado por Reeves durante toda a projeção. É só perceber como as acrobacias remetem à jogabilidade da quadrilogia Arkham, mas ficam sempre com o pé no chão para evidenciarem o amadorismo do personagem em início de carreira. A cena do primeiro “vôo” é um dos melhores exemplos disso: ele fica receoso antes de saltar, a planagem em si não é nada plástica, mas momentos antes houve uma cena em que ele subiu as escadas com o gancho extremamente ágil – não é como aquela de Begins, com o realismo engessado do Nolan.

Impressiona o controle de Reeves quando pensamos na extrema violência da narrativa que consegue ser filtrada de caráter explícito de modo que o encaixe numa baixa classificação indicativa (PG-13). Essa escolha, inclusive, não só para não perder público e gerar o máximo de receita para o blockbuster. Existe a necessidade de comunicação com o jovem sobre esse tom sombrio adotado, mostrando como o Batman e/ou o Charada estão à mercê de deturpações de discurso impostas pela crueldade do mundo, além de suscetíveis à viralização dessas deturpações, que ganham voz em terras sem lei: a internet, para o caso do Charada e, em Gotham, para o caso do vigilantismo do Batman ou para o surgimento de demais criminosos, reflexos da retroalimentação da condição social da cidade. Portanto, o processo que vai da reconstrução do Batman no imaginário popular ao teor heroico visto naquela maravilhosa cena do sinalizador é também um processo educacional do jovem “nerdola” para com a maneira que interpreta e absorve semioticamente as suas “historinhas de herói”. 

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É bom frisar que assim como quando Charada, ao incorporar a vingança de Batman e se decepcionar com as reações de sua inspiração no interrogatório, alguns “fãs” (sim, aquele tipo de fã…) podem se incomodar – para o bem do personagem – em lembrar o herói que o Batman é de verdade, assumindo a palavra justiça e superando as cicatrizes que o diferenciam em força e inteligência. Batman de Matt Reeves se coloca assim, como um filme revisionista, para resgatar o verdadeiro símbolo que o personagem deveria representar num contexto moderno, sem deixar de executar perfeitamente a amálgama pessimista e sombria do Cavaleiro das Trevas. Difícil dizer que é seu melhor filme solo – rivaliza em qualidade com O Cavaleiro das Trevas do Nolan –, mas não é exagero dizer que é a versão “definitiva” (a melhor, para mim) do herói para os cinemas.

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Diários de auto-ajuda de Brucian Jelyane (ou comentários que valem a pena fazer e não se encaixaram organicamente no texto):

  • “Um dia estamos no topo, outro dia somos palhaços…”. Não há uma confirmação oficial de que o personagem de Barry Keoghan é realmente o Coringa. Ele só solta essa frase em alusão óbvia ao personagem. Na última aparição do Charada no filme, já preso no Asilo Arkham, ele está na cela ao lado.
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  • Não houve espaço para encaixar o Pinguim no texto. O trabalho de maquiagem é incrível, mas Colin Farrell é um ator, para mim, no máximo mediano (apesar de esforçado), sendo assim, ele tem pouquíssima presença em cena para justificar um comentário maior do que a sua pequena (embora ótima, considerando a cena de ação do Batmovél) interferência na história quando ajuda a desvendar o principal Enigma do filme. Por sinal, olhem só isso aqui.
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  • Complementando a minha leitura sobre a provocação social extra-filme dos “nerdolas”: qual era o grande problema apontado por Charada? Renovação. Coincidência com a reflexão da obra? Acho que não!
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  • Michael Giacchino é um gênio! Pena que ele tenha mais é que salvar várias trilhas necessitadas e limitadas, por serem feitas à toque de caixa para os filmes da Marvel. Porque é só lhe dar um pouco de liberdade que ele consegue entregar algo que rivaliza com os clássicos temas de Danny Elfman e Hans Zimmer. Top 3 melhores coisas do filme.
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  • Sei que a crítica é com spoilers e provavelmente quem leu até aqui já viu, mas… fiquem para a única cena pós-créditos, no final dos créditos.
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  • Agradecimento especial ao Davi Lima e Luiz Santiago que auxiliaram na formatação para o texto ficar o mais completo possível.
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Batman (The Batman | EUA, 2022)
Direção: Matt Reeves
Roteiro: Matt Reeves, Peter Craig
Elenco: Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Jeffrey Wright, Colin Farrell, Paul Dano, John Turturro, Andy Serkis, Peter Sarsgaard, Jayme Lawson, Barry Keoghan, Gil Perez-Abraham, Peter McDonald, Con O’Neill, Alex Ferns, Rupert Penry-Jones, Kosha Engler, Archie Barnes, Janine Harouni, Hana Hrzic, Joseph Walker, Luke Roberts, Oscar Novak, Stella Stocker, Sandra Dickinson, Jack Bennett
Duração: 176 minutos.

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