Desde Eu Posso Ouvir o Oceano (1993) que o Estúdio Ghibli não tinha um longa-metragem televisivo, embora Aya e a Bruxa (2020) tenha recebido esse tratamento por coisas alheias ao seu histórico de produção. O filme, dirigido por Gorô Miyazaki, é uma adaptação do livro Tesourinha e a Bruxa (2011), de Diana Wynne Jones, a mesma autora da série literária O Castelo Animado, que também ganhou uma adaptação pelo Ghibli, em 2004, dirigida por Hayao Miyazaki. Os planos iniciais para a estreia de Aya e a Bruxa miravam no Festival de Cannes de 2020, mas com a pandemia e as mudanças no evento, os produtores precisaram mudar a estratégia de exibição e negociaram com o canal japonês NHK, que exibiu o longa em dezembro de 2020. A tão sonhada campanha nas telonas foi adiada para 2021, mas pensando na qualidade do filme… foi melhor mesmo que a obra garantisse primeiro o seu lugar seguro na telinha.
Um das recorrências no estilo de Gorô Miyazaki na direção é a constante brincadeira com gêneros e o trabalho numa base de ação que muitas vezes lida com entrelinhas misteriosas, sugestões simbólicas ou elipses na hora de conduzir certas partes do roteiro, algo que até o presente filme funcionou muito bem em Da Colina Kokuriko (2011) e de maneira medíocre em Contos de Terramar (2006). No caso de Aya e a Bruxa, esse estilo de contar história começa mal, muito mal. Estamos diante de uma ação em andamento que parece emprestar elementos de Lupin III, mas o uso dela apenas como introdução é ridículo tanto em sua estrutura (que surge e some do nada) quanto em seu uso como recurso de memória, porque os flashbacks que teremos depois não retomam esse ponto do passado, como seria organicamente necessário, de modo que o início do filme é puro desperdício de tempo.
Esse mal caminho acaba sendo modificado no miolo da animação — a primeira em 3D do Estúdio, em se tratando de longas-metragens –, com um direcionamento mais simpático para a vida de Aya e a forma como ela se relaciona com Bella Yaga e Mandrake, seus “pais adotivos”. No entanto, o roteiro parece nunca se decidir que tipo de história verdadeiramente quer contar, e nessa dúvida, acaba utilizando a maior parte do filme com tempo morto, mostrando Aya assumindo um papel de empregada doméstica de Bella Yaga e Mandrake, o demônio, ficando nervoso… até que simpatiza com a garotinha e, aos poucos, encaminha o enredo para a construção de uma família bem diferente. Tarde demais.
A grande questão é a qualidade geral do projeto, a começar pela visual. Nunca, em centenas de anos, eu apontaria esse filme como sendo uma “cria do Estúdio Ghibli“. Nada daquilo que imaginamos do prestigiado estúdio pode ser visto de forma completa e genuína nessa animação, que tem uma criação imagética para o 3D tão feia e tão mal desenhada, que nos parece um filme de um estúdio qualquer dos Estados Unidos, lançando por volta de 2006. Sim, algumas construções nos chamam a atenção, como a do demônio Mandrake (que o tempo inteiro me lembrou um certo personagem de Zombillénium) e suas manifestações de raiva; ou a presença do gatinho preto, o “familiar da bruxa“. Mas tanto Bella Yaga quanto a própria Aya carecem daquele elemento magnético que personagens centrais dos filmes desse estúdio possuem, e a história que coloca essas personagens na tela não ajuda em nada a melhorar isso.
Perdido entre uma trama musical no passado de uma banda composta por pessoas/criaturas fantásticas, e um presente que explora a adoção e a formação de um ideal familiar — seguido de uma prática de convivência — e ainda uma pitada de ideias sobre amizade e saudade de um amigo, Aya e a Bruxa é uma decepção na forma e no conteúdo. O uso da tecnologia para sua animação é ruim; os desenhos não aparecem bem na tela na maior parte da projeção; o uso de músicas parece completamente jogado na maior parte do tempo, e a história, que deveria ao menos elevar um tantinho mais aquilo que o visual não nos entrega, simplesmente não avança. Gosto muito da parte final, em termos de direcionamento da trama para a formação de uma família diferentona, mas só como elemento isolado mesmo. Seu tratamento no corpo do filme parece abrupto e compõe a lista de coisas que não funcionam ou funcional parcialmente no longa. Para mim, o único filme ruim do Estúdio Ghibli. E espero do fundo do coração que seja o último.
Aya e a Bruxa (Âya to majo) — Japão, 2020
Direção: Gorô Miyazaki
Roteiro: Keiko Niwa, Emi Gunji (baseado na obra de Diana Wynne Jones)
Elenco: Kokoro Hirasawa, Gaku Hamada, Eva Kaminsky, Sherina Munaf, Miyuki Sahaku, Shinobu Terajima, Etsushi Toyokawa, Yûji Ueda
Duração: 82 min.