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Crítica | “Awaken, My Love!” – Childish Gambino

por Kevin Rick
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Childish Gambino

All I see is zombies Childish Gambino
Moving all around us
You can hear them coming
(They can take your life)
You can hear them breathing, breathing down your spine

A trajetória de Childish Gambino, vulgo Donald Glover, é um tanto incomum, no sentido mais espetacular da palavra. O artista começou sua carreira como escritor da sitcom 30 Rock, primeiramente expondo seu lado comediante para a indústria, e logo depois assumiu um dos papéis principais em outra sitcom célebre, chamada Community, além de soltar ótimos especiais de stand-up através do Comedy Central. Daí, em meio ao caminho cômico, Donald decidiu investir no seu lado musical, tomando para si o alter ego de Childish Gambino, que, inicialmente, rendeu alguns álbuns de hip-hop recebidos de modo divergente pelo público. A diversificação do seu alcance artístico estava lá, mas Donald não era verdadeiramente reconhecido como tal, especialmente por não ser um dos grandes nomes da indústria em nenhuma das mídias descritas. Isso começou a mudar a partir de 2016, quando Glover criou/dirigiu/protagonizou sua série Atlanta, além de aumentar seu poderio estrelar participando de franquias icônicas e remakes bilionários. No meio desta ascensão no audiovisual, ele também se transformou musicalmente com o lançamento de Awaken, My Love! – além do single This is America que explodiu na internet.

Essa viagem metamórfica do artista foi feita no intuito de demonstrar sua versatilidade e inconformismo artístico, características que moldam Awaken, My Love!. Como disse, a carreira musical de Childish Gambino iniciou no hip-hop, uma época de Glover que divide opiniões – eu, particularmente, não sou muito fã –, mas é interessante perceber que essa fase rapper é escanteada neste álbum, raramente havendo inserções do gênero. Aliás, a música mais próxima desse período do cantor seria California, justamente a faixa que menos gosto dentro do projeto coeso de Glover, rompendo a jornada metafísica proposta pelo cantor. Logo, a surpresa não vem apenas da qualidade da obra, mas de como um artista se reinventou completamente. E, como viram acima, acredito que a resposta é simples: Donald gosta de experimentar estilos. E isso resume bem Awaken, My Love!, um álbum integralmente experimental.

O músico nos mergulha numa experiência nostálgica, trazendo gêneros musicais remanescentes dos anos 70 e 80, como funk e soul, misturando-os com um R&B contemporâneo e rock progressivo. Esse misto musical é uma pedreira para qualquer cantor famoso, especialmente alguém que fez carreira como rapper, mas eu disse que é uma obra surpreendente, certo? Donald Glover parece ter sido tocado pelos deuses do soul com uma das vozes mais lindas da indústria atualmente, puxando acordes vocais ao ponto de tocar a alma e desmanchar o coração. Ele manuseia seu vocal como um instrumento vivo, alcançando limites estridentes de sobressalto numa hora, e então atingindo tons melódicos pacíficos logo em seguida, misturado com flutuações de auto-tune distorcidas que dão um quê onírico para a obra. Existem momentos que ele soa até mesmo surreal, medonho, em uma das características do álbum de ser aterrorizante (já volto a falar disso). É como estar diante de uma orquestra transcendental, e sua voz dita o ritmo, seja ele poético, absurdo, trágico ou eufórico.

Essa mescla de sentimentos e emoções variadas acontece justamente por causa do experimento insano de Glover, com cada faixa existindo como um ser próprio, desgarrado do todo, mas, ainda assim, casam perfeitamente no teor psicodélico que permeia o álbum. Me and Your Mama fala sobre um amor torturante, abrindo o álbum de modo alucinante e melancólico. Em Have Some LoveBaby BoyStand Tall, temos um mergulho no interno do artista, melodicamente falando de diferentes aspectos familiares, amor pelo próximo, apreciação fraternal na comunidade negra americana, e, especialmente, sobre a relação com seu filho, desenvolvendo temáticas sobre sonho, coragem e perseverança, conectando-as com seus próprios pais. São passagens que dispõem de uma guitarra acústica aconchegante dentro deste microcosmo alucinógeno.

Mas as faixas mais interessantes de Awaken, My Love! para mim são o trio de TerrifiedBoogiemanZombies. Assim como Glover utiliza diferentes músicas para tocar em assuntos do cerne familiar, aqui, ele maneja um terror delirante, ainda que bastante calcado na vida real, sobre preconceito racial, a malignidade social e a visão estadunidense estereotipada da minoria afro-americana. Ele dá vida ao medo, utilizando fortes riffs de rock em uma guitarra distorcida, e como disse anteriormente, sua voz dita essa atmosfera aterrorizante, realmente nos colocando dentro da marginalidade. Temáticas essas que ele apresentaria mais fervorosamente em This is America.

Junto da produção genial de Ludwig Göransson, que continua quebrando barreiras em como criar composições mescladas, clássicas e contemporâneas ao mesmo tempo, na era digital, Donald Glover criou um álbum que exterioriza sua persona. Estilizado, errático, surreal, romântico, socialmente consciente e, principalmente, talentoso. Uma viagem psicodélica do funk, soul, rock e R&B, misturando gêneros musicais e temáticas comuns do extenso trabalho artístico de Glover. E no meio deste paralelo de amor e compaixão com um discurso sociopolítico pessimista e real até demais, temos Redbone, a cereja no bolo de Awaken, My Love!. Destoando do resto do álbum, a faixa lembra o trabalho de Prince, nos transportando para um mundo de luxúria, sexo e transgressão, sustentadas pela voz do artista que transmite desejo, o melhor exemplo de um funk psicodélico lento e transcendental. Uma música que já nasce clássica. Um álbum que já nasce clássico.

Aumenta!: Redbone
Diminui!: California

Awaken, My Love!
Artista: Childish Gambino (Donald Glover)
País: EUA
Lançamento: 02 de dezembro de 2016
Gravadora: Glassnote
Estilo: Soul, R&B, Funk

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