Em 1944, o Ministério da Informação britânico encomendou dois curtas a Alfred Hitchcock como parte dos esforços de guerra. Como tais, as obras são peças de propaganda anti-Eixo que miram a França de Vichy, liderado pelo Marechal Philippe Pétain, que negociou um famigerado armistício com a Alemanha Nazista.
Os curtas ficaram inacessíveis ao público em geral por muitas décadas já que eles foram engavetados pelo Ministério da Informação, possivelmente em razão do descontentamento com o resultado final, somente chegando à luz do dia quando o British Film Institute – BFI desencavou-os e restaurou-os no começo dos anos 90 para a projeção em cinemas de arte e, depois, lançamento em vídeo doméstico. Abaixo, seguem as críticas de cada uma dessas obras raras de Hitchcock.
Aventure Malgache
Como o título evidencia, Aventure Malgache se passa não na Europa continental, mas sim em Madagascar, então colônia francesa. Com a capitulação da França diante do poderio militar nazista e a criação da França de Vichy, os patrióticos franceses habitantes da ilha no Oceano Índico organizaram sua própria Resistência e a narrativa aborda um pouco da vida de seu líder, Paul Clarus (vivido por Paul Clarus, nome artístico de Jules François Clermont, advogado e roteirista do curta), e seu trabalho para expatriar cidadãos da ilha para que eles se juntem aos esforços contra a Alemanha Nazista e seus aliados.
Interessantemente, a narrativa é contada em flashback a partir de uma conversa do próprio Paul Clarus, no presente, como ator preparando-se para viver ele mesmo em uma peça sobre seus atos heroicos em Madagascar. Essa meta-narrativa fica ainda mais saborosa quando notamos que a própria história de Clarus pode ter sido inspirada na vida de Clermont, ainda que se especule que a inspiração possa ter vindo do ator Claude Dauphin, que trabalhou na Resistência Francesa como operador de rádio e que, segundo consta, colaborou com Hithcock em consultorias variadas sobre sua história. De onde a história realmente veio ou se ela é uma amálgama Clermont-Dauphin talvez nunca saberemos, mas a meta-narrativa ganha outra dimensão quando levamos isso em consideração.
Seja como for, o curta em si é um trabalho pouco inspirado de Hitchcock. O uso de flashbacks como artifício estrutural é básico, beirando o burocrático, com uma história que peca por ter diálogos expositivos demais e ação de menos. Sim, é uma propaganda política da época de guerra por excelência, mas ela poderia ser mais do que apenas isso. Se a julgarmos apenas pela sua função, ela funciona, mas, se formos além, percebe-se uma certa frieza, até falta de vontade de colocar em tela algo que prenda o espectador para além da mensagem que passa. Se há um destaque, ele fica mesmo pelas atuações de Paul Clarus, mas muito mais pelo seu jeito, digamos “fanfarrão” de ser e de Paul Bonifas como o chefe da Sûreté que inferniza a vida da Resistência.
Aventure Malgache (Reino Unido, 1944)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Jules Francois Clermont
Elenco: Paul Bonifas, Paul Clarus, Jean Dattas, Andre Frere, Guy Le Feuvre, Paulette Preney
Duração: 30 min.
Bon Voyage
Bon Voyage é a prova clara que Aventure Malgache poderia ser mais do que apenas uma mera propaganda política. Só pelo fato de Alfred Hithcock utilizar também uma estrutura de flashbacks, mas, desta vez, no estilo que Akira Kurosawa tornaria famosíssimo com seu incrível Rashomon, em 1950, ou seja, como uma forma de mostrar mais de um ponto de vista sobre os mesmo acontecimentos, esse curta já merece destaque.
Mas há mais. Em Bon Voyage, temos um legítimo Hitchcock dessa era, com uma história muito interessante e ágil de espionagem e traição que prende o espectador à tela do começo ao fim dos rápidos 26 minutos que dura. No presente, mas ainda durante a Segunda Guerra, John Dougall (John Blythe), um sargento escocês da Força Aérea Britânica que havia sido abatido em território francês ocupado e mantido como prisioneiro, passa um relatório sobre sua fuga a dois oficiais da inteligência francesa na Inglaterra.
Quando primeiro voltamos ao passado a partir da chegada de Dougall, juntamente com outro prisioneiro, na cidade de Reims, o que vemos é uma narrativa direta e simples, que revela a percepção inocente de mundo que o sargento tem. Hitchcock desde início mostra um excelente trabalho de câmera com belíssimo contraste na fotografia em preto e branco, além da inserção de uma elipse temporal que é, ato contínuo, utilizada como espaço a ser preenchido pelo segundo flashback, desta vez contado a Dougall pelo oficial da inteligência francesa e que joga luz sobre seu companheiro de fuga e empresta um viés de suspense muito bem construído considerando o tempo de duração da fita. O jogo de chiaroscuro da fotografia de Günther Krampf, nesse ponto, ganha mais destaque ainda e, com ele, o suspense é amplificado.
Não é, porém, de forma alguma, uma narrativa complexa ou repleta de camadas. Muito ao contrário, a mensagem patriótica é clara, mas ela, aqui, não escraviza a narrativa. O roteiro, aliás, é até bem econômico nos diálogos, encontrando um bom equilíbrio entre exposição e imagens que valem mais do que mil palavras. Blythe, porém, tem uma atuação apática demais, pouco convencendo sobre seu drama de fuga ou mesmo passando alguma emoção quando é interrogado. Mesmo assim, o resultado é de primeira ordem e mostra, muito brevemente, o olhar habilidoso de Hitchcok na construção de suspense.
Bon Voyage (Reino Unido, 1944)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Angus MacPhail, J.O.C. Orton
Elenco: John Blythe, Janique Joelle
Duração: 26 min.