Em outros textos sobre os filmes de Hong Sang-soo, já comentei sobre uma espécie de desinteresse que envolve sua forma de filmar. Em Turning Gate; Certo Agora, Errado Antes; Encontros e O Filme da Escritora, por exemplo, podemos ver as marcas dessa maneira de se fazer cinema evoluir, passando cada vez mais a um desinteresse radicalizado tanto da direção pelos personagens – no sentido de haver certo distanciamento do que os acomete –, quanto dos próprios modos de se filmar e montar, com uma tendência exponencial do olhar de Sang-soo pelo plano “limpo”, estático, espécie de tentativa de desmontar qualquer pretensão possível de encenação interessada. Em Através do Fluxo, parece haver uma maximização desse cinema desinteressado, tanto no plano narrativo, quanto no plano da mise-en-scène por si mesma.
Isso pode ser visto, por exemplo, no enredo do longa. Jeonim (Kim Min-hee) é uma professora universitária que precisa montar uma peça com seus alunos para um festival. Após um problema envolvendo o comportamento do estudante que dirigiria a obra, convida seu tio, Sieon, um velho ator que agora comanda uma livraria, para ser o substituto. Assim, Sieon conhece Jeong, uma professora sênior, amiga de Jeonim, que é obcecada pelo ator. É no entremeio desses três sujeitos que a narrativa se monta: uma espécie de passeio pelos desejos, pelas expectativas e pelas frustrações. De certa forma, a proposição de um olhar sobre a vida justamente centrada em suas banalidades e seus pontos basilares.
Assim como em seus outros filmes, Sang-soo propõe uma encenação cujo enfoque se dá no interior do plano, com uma câmera que apenas em momentos específicos se movimenta, dando certo valor à posição do ato de filmar, o que envolve uma consciência muito grande de seus modos. Ao eleger o movimento como algo específico, exatamente demarcado, o cineasta parece cada vez mais atribuir certa noção de responsabilidade aos modos de ver tanto do autor, quanto do espectador, envolvendo todos os componentes da equação na análise do que consiste tal gesto. Filmar, para Hong Sang-soo, parece ser um ato revestido de uma consciência exponencialmente crescente, até o ponto em que a radicalização deixa de fazer sentido como um ato por si, criando um certo distanciamento (ou dilatamento) na relação proposta entre o plano e aquele que o assiste.
Isso se evidencia também na condução da narrativa. Sem um propósito aparente, sem uma espécie de condução entre o que se espera comumente de um andamento narrativo, é como se Sang-soo olhasse para nós e dissesse: não há nada aqui para ver. Ou melhor: há o que ver, mas ver é unicamente o que importa. Assim como a experiência impossibilita uma aquisição total da ideia de sentido, o cinema parece existir como um mecanismo de reprodução dessa ideia. E é assim, justamente, que o filme se encerra: quando esperamos que algo inesperado aconteça, especialmente após todo o andamento ineficiente da narrativa, Jeonim é quem preenche o plano para, tropeçando entre as pedras de um rio, anunciar que na verdade não há nada, que não há nada a se buscar.
É como se, de certa forma, esse fosse o caminho claro da condução do cinema de Sang-soo. Se desde o início de sua carreira ele parece querer compreender as relações de sentido propostas entre personagens, filme e plano, agora cada vez mais seu cinema se volta justamente para radicalizar o desinteresse formal e temático em função justamente de propor uma tese: é impossível apreender uma ideia de sentido na arte, ou melhor, apreende-la em sua totalidade, como se o filme fosse uma resposta à vida ou uma mera mimese da realidade. É no ato de fissurar cada vez mais a perspectiva da encenação que o cineasta implica a perspectiva de que talvez realidade e ficção não sejam regimes tão distintos assim.
Nesse sentido, o filme quase não tem uma história que se justifica. Os planos serem quase todos estáticos, se justifica. A lua, demarcação temporal tradicionalmente envolta numa tentativa de poeticidade, se justifica. Radicalizando cada vez mais seu filmar, Sang-soo propõe uma formalização de sua perspectiva cada vez mais centrada em desmontar uma ideia do que se é cinema. Ao mesmo tempo, não deixa nunca de, paradoxalmente, propor olhares sobre o que é a própria vida – e como ela mesma impossibilita compreendermos o total sentido das coisas, o que apenas contribui para o transbordamento da beleza.
Através do Fluxo (Suyucheon) – Coreia do Sul, 2024
Direção: Hong Sang-soo
Roteiro: Hong Sang-soo
Elenco: Kim Min-hee, Kwon Hae-hyo, Cho Yun-hee, Ha Seong-guk, Kang Soyi, Park Hanbitnara, O Yoonsoo, Park Miso, Lee Kyoungmin, Han Nuri, Kim Sunjin
Duração: 111 min.