“O realismo é antes de tudo um tipo de humanismo”
André Bazin
Através das Oliveiras (1994) é a parte final de uma série de três projetos do diretor iraniano Abbas Kiarostami que ficou conhecido como a trilogia Koker, dos quais os outros dois filmes anteriores, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987) e A Vida Continua (1992) fazem parte. Realizados entre o final dos anos 80 e meados nos anos 90 podemos enxergar as três narrativas juntas como uma boneca russa, a matrioska, na medida em que ambos se originam um do outro. Por exemplo, se em A vida Continua vemos o próprio diretor Kiarostami (interpretado por Farhad Kheradmand) buscando reencontrar o ator mirim protagonista de Onde Fica a Casa do meu Amigo? após um grande terremoto afligir o Irã, em Através das Oliveiras assistiremos a um filme sobre a produção desse título anteriormente citado, quase um por trás das câmeras, um making of, porém, tendo um recorte bem específico na tentativa do (não) ator Hossein Rezai em conquistar o amor de Tahereh Ladanian, (não) atriz com quem tem que contracenar em um segmento específico das filmagens do road movie iraniano.
Se por um lado, estar no final das narrativas do diretor captadas na região de Koker, possa ter beneficiado o filme na medida em que o tornou mais livre em seu conteúdo, possibilitando à trama mais tempo e foco no aspecto psicológico e humanístico de suas personagens, por outro lado, torna um tanto árduo ao espectador iniciante adentrar na narrativa do filme sem se sentir perdido, pois em muitos pontos ela se torna mais interessante quando estamos inteirados do jogo proposto pelo autor – narrador de revisitar cenas do filme anterior, mas por outros pontos de vista.
Sem sombra de dúvidas, o maior exemplo disso é a principal sequência da obra, a conversa do casal recém casado interpretado pelos protagonistas do filme. Acompanhamos a gravação dessa cena, que fez parte do filme anterior, em um momento no qual podemos contemplar o que se passa naquele tempo e espaço não captado pela câmera e que atribuímos, por meio da nossa imaginação, significado no extracampo. Ao revelar o não dito, o diretor aproxima ficção e realismo, espectador e objeto, lúdico do sensorial, vistos através das oliveiras, ou por lentes cinematográficas, a registrarem mais do que o real ou o concreto podem nos dar, alcançando o campo dos sonhos, das esperanças perdidas e por que não do desespero das paixões não correspondidas. Talvez, até mesmo do amor.
A direção adota aqui novamente o mesmo estilo contumaz, com uso de planos – sequência filmados de dentro de um carro, representando o ponto de vista do espectador; planos grandes, amplos e abertos, de forma a tornar o cenário e a localidade uma personagem bastante relevante à obra e claro, os close – ups que em contraponto com a ambientação rural e bucólica aprofundam a dimensão emocional das personagens, os quais confessam muito mais pelo olhar do que pela fala, pela fúria do que pela razão. Um exemplo fascinante disso é o motivo pelo qual Hossein não quer ajudar a desobstruírem a estrada por onde ele e a produtora da equipe, Shiva, tem que passar. Primeiramente acanhado, acompanhamos nos instantes de pequenos olhares e gestos o que só depois seria admitido verbalmente, não quer mais ser pedreiro, não foi contratado para carregar pedras ou tijolos. Creio que a citação a seguir, de uma crítica de Através das Oliveiras escrita por Carlos Natálio, do À Pala de Walsh, dê a dimensão exata do que estamos falando:
‘’Através das Oliveiras tem sido considerado como um filme rosseliniano na medida em que a extensão de toda a sua mise-en-scène mostra ao espectador que, mais importante do que a construção do realismo no filme (que deveria levar o realizador a substituir a actriz, pois que ela se recusa a falar com Hossein), é filmar o realismo que vem de fora do filme, isto é, as confissões de amor, o suspense de saber se ela lhe vai dar um sinal, a teoria dos casamentos entre ricos e pobres, letrados e iletrados de Hossein, acompanhado do seu olhar triste.’’
Comentando um pouco mais sobre o elenco, composto majoritariamente de não atores, destaco aqui o trabalho de um dos poucos atores de carreira a aparecerem no filme, Mohamad Ali Keshavarz, que entrega uma performance excepcional, como uma persona do próprio Abbas Kiarostami, trazendo novamente a figura paterna, professoral, e porque não hierofania, auxiliando o protagonista da obra em sua jornada através das oliveiras em busca do amor verdadeiro. Um aspecto bastante relevante que a obra traz consigo é o de abrir de forma mais visceral o abismo social presente na sociedade iraniana da época, trazendo um tom mais político a um país geralmente fechado ao resto do mundo. Hussain, em um dado momento, confessa ao diretor não querer uma esposa analfabeta, pois ele também o é, precisa de alguém que futuramente ensine a seus filhos a lição de casa, e continua esboçando que aquelas que tem casa deveriam se casar com quem não as têm e os ricos deveriam, também, se casarem com os pobres, pois assim todos teriam alguma coisa e nada faltaria a ninguém.
Em contraponto com o estilo mais simbólico de seu road movie anterior, o diretor adotou diálogos mais naturalistas e focados no trivial e comum de um dia de gravação. Se diretores como Jean Luc Godard ou Glauber Rocha, em seus filmes, visaram desnudar a imagem e a farsa da montagem fílmica ou ainda intelectualizar a experiência espectatorial à moda de Bertold Brecht, Kiarostami aposta na sutileza do que não é dito, ou no caso, do que não é ouvido, seja um ‘’te amo’’ ou um ‘’jamais irei querer você’’. Como Carlos Natálio bem aponta ‘’ O cinema de Kiarostami tem esse poder do suspiro do coração de Hossein, capaz de abalar toda a terra no seu batimento obstinado de amante que nunca pára de caminh’amar.’’
Ao nos colocar para enxergar, com ele e como ele, através das oliveiras, Abbas nos leva novamente a entender o poder e a força da vontade e do amor, mesmo que aparentemente pequenos, em meio ao cosmos das tortuosas paisagens iranianas, a engolir nossos protagonistas, em meio do esforço e da reconstrução de um povo o qual teve que lidar com a perda repentina de parentes de um dia para a noite, a perda completa de casas e lares, talvez até de sua esperança, e que mesmo assim, através das lentes de uma câmera e da arte enquanto forma de expressão que rompe classes sociais e o próprio instante do tempo, podem se ver ali, em tela, novamente, sonhando com a vida que ousaram continuar.
Através das Oliveiras (زیر درختان زیتون / Zire darakhatan zeyton) – Irã e França, 1994
Direção: Abbas Kiarostami
Roteiro: Abbas Kiarostami, Harold Manning, Hengameh Panahi
Elenco: Mohamad Ali Keshavarz, Farhad Kheradmand, Zarifeh Shiva, Hossein Rezai, Tahere Ladaniam
Duração: 104 minutos