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Crítica | Atos Impuros: A Vida de Uma Freira Lésbica na Itália da Renascença, de Judith C. Brown

A abadessa rebelde.

por Ritter Fan
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Atos Impuros, livro da historiadora americana Judith C. Brown sobre a abadessa lésbica Benedetta Carlini, não é um romance, mas sim o que mais próximo já li de uma obra acadêmica fora de minhas áreas de atividade profissional cotidiana. O que, porém, borra a linha entre uma coisa e outra é, em primeiro lugar, o assunto em si, polêmico, mas profundamente extraído de documentação vasta da Igreja Católica e outras fontes e, depois, a forma como a autora escreve, sempre mantendo sua objetividade de estudiosa, mas ao mesmo tempo criando uma narrativa que é capaz de quase que imediatamente colocar o leitor em meio às dúvidas e vida dessa personagem tão intrigante.

A obra é dividida em poucos capítulos que traçam um panorama completo – ou o mais completo possível – da freira em exame. No primeiro, A Família, a autora traça a inevitabilidade da vida pia de Benedetta ao nascer depois de um parto complicado que quase ceifou a vida da mãe. Depois, em O Convento, Brown foca sua análise na cidade de Pescia e na estrutura hierárquica do Convento da Mãe de Deus onde a jovem futura freira passaria a viver desde os nove anos de idade. A Freira lida, claro, com a carreira de Benedetta naquele contexto e A Primeira Investigação e A Segunda Investigação, então, abordam, como fica bem evidente, as investigações eclesiásticas sobre suas atividades. Brown mostra uma impressionante capacidade de reconstruir eventos a partir principalmente das transcrições dos interrogatórios a que Benedetta e outras freiras foram submetidas, chegando até mesmo a lidar com a alteração da caligrafia do escriba quando as partes mais “quentes” da história começam a ser relatadas e, ao mesmo tempo, considerando o assunto sob análise, ela consegue ser constantemente imparcial em suas conclusões, jamais adotando este ou aquele lado, deixando o leitor livre para justamente fazer isso com liberdade.

Antes, porém, de mergulhar no assunto em si, Brown brinda os leitores com uma espetacular introdução em que ela justifica seu interesse especial pela vida de Benedetta Carlini dentre tantas outras pessoas que ela estudou. Como ela deixa bem claro, a homossexualidade na Europa do século XVI não era algo desconhecido ou ignorado pela Igreja. Há relatos  extensos e detalhados sobre essas “atividades ilegais e imorais” nos anais da religião, mas a gigantesca maioria lida com a homossexualidade masculina. A feminina, apesar de haver abordagens acadêmicas dos religiosos da época e de também haver investigações sobre o assunto, era abordado com muito menos frequência, o que a leva a concluir que era algo, em larga escala, simplesmente ignorado pelas autoridades religiosas. Por isso é que as detalhadas investigações sobre Benedetta chamaram sua atenção.

Mais ainda do que isso, Benedetta não foi apenas um freira. Apesar de suas origens humildes nas regiões montanhosas da Toscana (mas não tão humilde assim, já que sua família, em comparação com as demais de seu vilarejo, era uma das mais “ricas”), ela cresceu na hierarquia do convento até chegar a ser abadessa por vários anos e, ao que tudo indica, muito eficiente e astuta em seu trabalho de organização e gerência do convento e das freiras. E, como se isso não bastasse – e em larga escala a principal razão de ela ter sido escolhida como abadessa – Benedetta era mística, ou seja, tinha visões religiosas das mais variadas naturezas, sejam com seu anjo da guarda Splenditello (um de seus anjos, mas o principal) e com ninguém menos do que Jesus Cristo em pessoa. Em outras palavras, sua importância na estrutura religiosa de Pescia e, por consequência, da região da Toscana, era considerável.

Inclusive, as duas investigações a que ela foi sujeita não se referiam a seus “atos sexuais” com a freira Bartolomea Crivelli, que foi encarregada justamente de constantemente vigiá-la, dividindo um quarto, mas sim às suas visões, o que incluía o aparecimento das chagas de Cristo em seu corpo. Apesar de bem-vindas pelo corpo religioso, essas visões e premonições, no momento em que passaram a minimamente desafiar o status quo, foram objeto do escrutínio da Igreja e Brown, nesse processo, mergulha muito detalhadamente na natureza dos interrogatórios e das visões em si, jamais exatamente duvidando do que Benedetta via e preocupando-se muito mais com o que exatamente era aceitável à Igreja.

O assunto relacionado à sexualidade de Benedetta, portanto, vem quase que literalmente como um plot twist, uma genuína reviravolta dramática quase que cheia de tensão e mistério, já que os investigadores nem de longe esperavam algo dessa natureza (é interessante como Brown deixa evidente que, se era para desacreditar Benedetta, bastavam as autoridades dizerem que ela tinha um caso heterossexual com um padre ou algo nessa linha, outra razão para sua homossexualidade ser tão importante historicamente) e que só vêm à tona, pelas mais diversas razões – que Brown não se furta tanto em explicar quanto em especular, mas sempre dentro de ditames rígidos de sua profissão – na segunda investigação que, diferente da primeira, é mais “distante” e “fria”, sem que os envolvidos estivessem de alguma forma investidos em Benedetta como mística e já revelando um cuidado maior da Igreja em aceitar visões milagrosas como traços de religiosidade profunda.

Atos Impuros é um fascinante relato recheado de fontes e referências históricas que é capaz de abrir nossos olhos sobre a vida de uma importante, mas compreensivelmente “esquecida” freira italiana do século XVI, em pleno Renascimento, e que é inquestionavelmente uma porta para observarmos os profundos preconceitos religiosos sore a sexualidade de homens e, principalmente, de mulheres, estas sempre em posição “naturalmente” inferior em praticamente tudo o que faziam ou deixavam de fazer. Judith C. Brown pode ser uma grande historiadora, mas ela não faz nada feio como proto-romancista de thrillers medievais…

Atos Impuros: A Vida de Uma Freira Lésbica na Itália da Renascença (Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy – EUA, 1986)
Autora: Judith C. Brown
Editora original: Oxford University Press
Data original de publicação: 11 de dezembro de 1986
Editora no Brasil: Editora Brasiliense
Data de publicação no Brasil: 1987
Tradução: Claudia Santana Martins
Páginas: 240

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