Certos filmes se tornam verdadeiros universos nos quais se conta a história, já outras produções existem por enxergarem universos que podem estender uma narrativa que evidencie a realidade. Atlântida é uma espécie desse segundo exemplo. A lancha, os jovens e Veneza, três fatores que conversam num longa-metragem baseado na antítese de imagens como cursor de sua história, apesar de não superar a bolha dessa estética, suspendendo seu drama em águas rasas.
O diretor Yuri Ancarani se interessa muito pela juventude ociosa em suas lanchas ao redor de uma ilha perto de Veneza. Toda a história do filme gira em torno do cotidiano festivo e romântico de jovens fumando, curtindo um som e namorando em seus veículos motorizados e customizados. Para provocar um conflito mais condizente a essa realidade inerte, como se o tempo fosse irrelevante, o protagonista Daniele é posto num roteiro que ilustra um personagem dramático e obcecado pelo status relacionado à lancha. A direção não deixa dúvida que Daniele parece viver no seu próprio mundo, à parte da tranquilidade que temporalmente os jovens da sua comunidade parecem reproduzir no trato do cotidiano. Ele trabalha e olha em câmera lenta para a velocidade da lancha, ele dirige e não olha para a sua namorada, ele diz que a lancha é sua casa e quer exibir em Veneza.
O protagonista se imbui do formalismo do diretor. Formalismo, aqui, seria a maneira que a fotografia de Atlântida, com a montagem, estabelece simultaneidades de antíteses visuais com a ajuda da trilha sonora. O local onde os jovens passam o ócio é próximo de uma igreja. Numa placa está escrito “Ilha Deserta” e na cena seguinte mostra-se um agricultor colhendo. São contrapontos básicos que treinam o olho para que o drama do longa seja o mesmo para o protagonista, valorizando elipses da história entre uma noite e um dia, sem determinação precisa. As motivações da narrativa se colocam muito mais no olhar onisciente da câmera para o espectador do que permite interpretações mais realistas.
Dessa forma, a realidade e o universo desses jovens vão se revelando como um grande conflito, entre fugas da polícia por tráfico de drogas, invasão de navios cargueiros e roubo de hélices dos motores de lancha. Diante disso, a configuração do clímax se faz pelo perigo mais ordinário nas corridas de lanchas nesse mundo de ilhas venezianas. Nessa tentativa de compor um drama pelo que o espaço indica, uma tentativa de poetizar a malandragem e a imoralidade dos personagens, como uma maneira de simbolizar como eles se expressam, fugindo da escola e das responsabilidades, como a namorada de Daniele, chamada Maila, confessa para a manicure. O protagonista seria o último responsável que parece tentado e contaminado pelo ócio, como se as águas que as lanchas movimentam fossem hipnotizantes.
A antítese mais clássica busca alcançar o surrealismo do estilo desses jovens. No entanto, a narrativa com Daniele e seu drama soa como um esquema que põe a ficção para um objetivo documental. É como na introdução, as primeiras cenas das crianças brincando na água e um menino usando o celular, em sua própria realidade. O filme se coloca no comentário de insurgir o ócio como o lúdico nesse cenário italiano, mas ao tentar aprofundar um olhar nessa rotina aquática, o ócio se torna trabalho para a trilha sonora compensar a diluição didática da transformação.
Atlântida se porta mais como um cenário do que uma narrativa. O diretor aprecia muito mais o movimento dos jovens treinando murros numa praça e o plano aberto da fotografia para contrapor com o mais fechado em Daniele machucado, do que dar corpo narrativo visual além do encaixe de um esquema em uma realidade que quer registrar. Acaba-se formando um impasse que ainda se deleita na moralidade punitiva como alcance do drama, claramente deslocando visões poéticas para um contexto com prazer vago.
Atlântida (Atlantide) – Itália, 2021
Direção: Yuri Ancarani
Roteiro: Yuri Ancarani
Elenco: Daniele Barison, Maila Dabalá, Jacopo Torcellan, Bianka Berényi, Alberto Tedesco
Duração: 100 minutos.