Atlanta tem como foco as reações dos personagens principais a cenários autocontidos, explorando a identidade e a experiência de ser negro em situações peculiares e até surrealistas, sempre com bastante subtexto racial e denúncias sociais. É uma forma extremamente genial de expandir a comédia situacional de sitcoms e até conceitos como bottle episodes para um campo mais experimental. O criador Donald Glover nunca esteve realmente interessado em arcos narrativos bem delineados ou desenvolvimento mais comum de tramas, o que também não significa dizer que não há sentido narrativo. O direcionamento da história é mais temático e os dramas dos personagens envolvidos por respostas emocionais a diversas circunstâncias.
Se nas duas temporadas anteriores tivemos algumas histórias focadas nos protagonistas, agora temos episódios inteiros sobre outros personagens e com tramas completamente independentes. Há uma certa estranheza, com certeza, mas Atlanta sempre teve um tom subversivo, então acaba sendo um desenvolvimento natural. Aliás, o episódio de estreia, sobre um menino negro adotado por um casal de lésbicas, termina com Earn (Glover) acordando, algo que sintetiza a abordagem surreal do artista para sua obra satírica, como se tudo que vimos tivesse sido um sonho maluco. A história, porém, é baseada em fatos reais, mostrando como o mundo pode ser tão absurdo quanto os contos bizarros de Atlanta.
Também acho interessante notar como os três episódios sem participação do elenco principal (The Big Payback, Trini 2 De Bone e Rich Wigga Poor Wigga) focam no ponto de vista de personagens brancos – com parte do público reclamando da não-participação do quarteto de Earn, Paper Boi (Bryan Tyree Henry), Darius (LaKeith Stanfield) e Van (Zazie Beetz), sem entender as sutilezas críticas de Glover. Numa série sobre experiências negras, a terceira temporada traz pequenas vinhetas de outra perspectiva, explorando o conceito de white guilt (culpa branca) e também do “branco” no sentido privilegiado da palavra, inclusive olhando de forma crítica e reflexiva para parte de sua audiência, como eu. Não à toa, a narrativa principal muda de cenário, indo de Atlanta para a Europa.
Essa trinca de episódios contêm certos didatismos e obviedades que não gosto tanto, mas também não chegam perto de discursos burros. Muito pelo contrário, há conceitos bem desmembrados aqui, como The Big Payback e a bizarra discussão de liberais estadunidenses de que afro-americanos merecem compensação dos descendentes de antigos donos de escravos, com o roteiro satirizando esse cenário ao mesmo tempo demonstrando que a escravidão não é algo do passado – a cena final de negros em mesas de restaurante e brancos como garçons é sarcasticamente fantástica. Há um olhar para o racismo em níveis estruturais, culturais, antropológicos e históricos aqui, camadas também vistas em Trini 2 De Bone e relações domésticas entre etnias, e em Rich Wigga Poor Wigga e seus tópicos de identidade e benefícios de minorias.
No entanto, um tema central em forma de questionamento é mantido: “o que é ser branco?”. Fazendo uma analogia pobre, judeus não eram “brancos” durante o nazismo, entendem? Também vemos o roteiro tocando nessa ideia nos episódios da narrativa principal, como New Jazz e seu olhar para a cultura de cancelamento, ou então as inteligentes situações econômicas em White Fashion. Também é fantástico como os roteiristas tiram sarro da militância intolerante e do ativismo superficial, como nas cenas que um grupo de europeus condenam uma moça asiática ou no próprio pedido de desculpas de uma ponta metalinguística totalmente inesperada – notem como esse “personagem” não pega sua bebida para não “olhar” na frase do porta-copos.
Esta terceira temporada escancara o desinteresse da série em manter continuidade narrativa e explora com mais afinco a principal linguagem das histórias episódicas: comportamentos humanos, sociais e culturais. Ainda acho que a série perde algumas oportunidades satíricas, como a falta de exploração das relações raciais na Europa (retratada de forma bem estereotipada e “americanizada” por Glover), e sinto que o terceiro ano não tem episódios tão engraçados como B.A.N e Babershop ou tão aterrorizantes como Woods e Teddy Perkins, mas é a temporada mais reflexiva do seriado. Temos vários outros elementos e camadas abordadas, como Cancer Attack e suas ponderações artísticas sobre hip-hop ou então Tarrare e os dramas inerentemente humanos e psicológicos de Van, sendo impossível capturar ou falar sobre todos (e olhem que eu tentei). Os comentários sociais profundos e as sutilezas temáticas inteligentes continuam fazendo Atlanta ser Atlanta.
Atlanta – 3ª Temporada – EUA, 2022
Criação: Donald Glover
Direção: Hiro Murai, Donald Glover e Janicza Bravo
Roteiro: Donald Glover, Stephen Glover, Jamal Olori, Stefani Robinson, Fam Udeorji
Elenco: Donald Glover, Brian Tyree Henry, Lakeith Stanfield, Zazie Beets
Duração: 10 episódios de aprox. 30 min.