Gosto de acreditar que a incidência de cafonice no entretenimento é uma proporção universal, tipo o número áureo: transcende cultura, tema, época e tendência. E de regra essa infeliz proporção favorece a cafonice. É apenas uma Atlanta que se obtém para dezenas de Dear White People e variações – e não é que o tema em comum seja intrinsecamente brega, mas sim que tem muito artista mediano produzindo coisa por aí, tratando de todo o tipo de tema.
E ainda acho Atlanta passa longe de reivindicar o racismo como seu tema central. Em verdade, ela é principalmente um comentário sarcástico e bem humorado sobre as últimas tendências do entretenimento americano, e claro, com as relações raciais pontuando quase ubiquamente as inquietações de Earn, Darius e Alfred. Assinando boa parte dos episódios, Donald Glover mostra mais patentemente sua capacidade de criar drama através de bons personagens e boas premissas, além de estruturar os onze episódios de maneira mais coesa e imersiva. A temporada tem um problema central: será que Alfred vai demitir Earn? Outros confrontos aparecem na tarefa de desenvolver o resto dos personagens, mas tudo orbita o impasse central entre os dois primos – that’s good writing. É uma estrutura batida para seriados de TV, ainda que as situações absurdas da série eclipsem qualquer sinal possível de familiaridade.
Não obstante, essas situações vão além da simples inventividade e passam a participar ativamente da tensão entre Earn e Alfred, elas servem para ressaltar o desgaste a que chegou o relacionamento entre os primos, para a qual a mistura entre dinheiro e família se tornou o catalisador principal. Durante todo o curso dessa segunda temporada, o grupo arranja encrenca atrás de encrenca, e sempre parece que a culpa pode cair no colo de Earn. Seja na confusão entre o tio Willie e o jacaré no primeiro episódio, até a briga na festa do pijama lá pro final da temporada, Earn não tem culpa sobre a maioria das coisas que acontecem ao grupo, mas Paper Boi precisa de alguém que assuma a responsabilidade e o controle, alguém capaz de lidar com esse tipo de contingência, e Earn se vê completamente impossibilitado de fazer isso. É daí que surge o comentário racial da série, evidenciado pelo episódio da nota de cem dólares e do clube de strip-tease, por uns personagens tipo o agente branco do Clark County, e que tem seu raciocínio concluído pela história do advogado judeu no último episódio.
Até quando Atlanta resolve desviar-se de seu núcleo principal, as abstrações metafóricas da série desempenham a conexão necessária entre todos os seus conflitos. Assim surgem episódios como Helen, Barbershop, Teddy Perkins, e principalmente Woods. A série não deixa ninguém de lado, ninguém fica insulado dos temas abordados, até Tracy, o novo e irritante personagem que é introduzido para tencionar ainda mais a relação entre Al e Earn, tem aquela cena da entrevista de emprego. O relacionamento de Earn e Van tampouco é esquecido, protagonizando o excelente Helen, e Van ainda é o centro de Champagne Papi. Darius ganha a cena no profusamente comentado Teddy Perkins, em que vai visitar a mansão de um recluso milionário para tentar comprar um piano. Os três últimos episódios meio que recolocam a série sobre seu eixo principal, e a relação entre Earn e Al é aprofundada pelo maravilhoso FUBU.
Nenhum elemento da série parece colocado sem propósito, e a inventividade desses elementos fazem com que a sua realização mereça ainda mais apreço. É uma das melhores séries correntes do entretenimento, e merece atenção total.
Atlanta – 2ª Temporada – EUA, 2018
Direção: Hiro Murai, Donald Glover e Janicza Bravo
Roteiro: Donald Glover, Stephen Glover, Jamal Olori, Stefani Robinson, Fam Udeorji
Elenco: Donalg Glover, Brian Tyree Henry, Lakeith Stanfield, Zazie Beets, Harold House Moore, Cranston Johnson, Aubin Wise
Duração: 11 episódios de aprox. 27 min.