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Crítica | Ataque dos Cães

Um estudo de personagem no Velho Oeste.

por Luiz Santiago
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Thomas Savage é um nome forte dentro do gênero literário western, com obras publicadas entre 1944 e 1988. The Power of the Dog, livro do qual Ataque dos Cães é uma adaptação, foi lançado em 1967, e esta não foi a primeira vez que tentaram trazer a obra para o cinema. O projeto, no entanto, só saiu mesmo do papel pelas mãos de Jane Campion, que em 2009 dirigiu O Brilho de uma Paixão e desde então só esteve envolvida em uma série, a interessante Top of the Lake (2013). Com esse retorno depois de tanto tempo, a diretora cria um sensível e sutil estudo de personagem tendo como ponto central de discussão a masculinidade.

Mesmo antes dessa era de ressignificação do cânone e dos novos revisionismos que o faroeste nos trouxe a partir dos anos 2000, a persona do “homem do oeste” já era tema de investigação e desconstrução em alguns longas, algo que começou de forma tímida, no campo das ideias ou do exercício moral e ético da justiça nos anos 1940, e que chegou ao nosso tempo com um olhar cínico para os estereótipos, recebendo abordagens que podem mostrar temas antes considerados tabus para esse gênero ou propor uma nova forma de encarar alguns comportamentos e situações. Em sua adaptação, Jane Campion começa o exercício criando uma oposição bastante cuidadosa entre os irmãos Phil (Benedict Cumberbatch, em uma de seus melhores interpretações da carreira) e George Burbank (Jesse Plemons), fazendo-me lembrar um pouco de Os Irmãos Sisters, onde temos o mesmo tipo de apresentação cuidadosa para mostrar dois diferentes modelos de masculinidade no Velho Oeste.

O espectador tem o seu olhar atraído por todos os possíveis detalhes que diferenciam os dois irmãos. O tom de voz e a facilidade de se impor através da palavra; o figurino e a aparente higiene de cada um; os olhares, os gestos, além da angulação com que a diretora captura cada um ao longo do filme. Poucas cenas são necessárias para construir dois grandes arquétipos masculinos aqui, que estão cercados por algumas variantes, dentre as quais se destaca a do jovem Peter (Kodi Smit-McPhee), um garoto introspectivo, de modos mais delicados e nenhum trato agressivo ou imponente que façam-no se destacar como “um verdadeiro homem” para aquela sociedade. Nessa plataforma de reações é que o roteiro irá erguer pequenos monumentos ao ‘jeito de ser’ de cada um desses indivíduos, primeiro mostrando as suas práticas (ou seja, estabelecendo os clichês) e depois fazendo precisas incisões comportamentais, surpresas narrativas que nos espantam e deixam a história progressivamente mais rica.

Em sua unidade, Ataque dos Cães combate o convencional através de uma arma simples, invertendo comportamentos a partir de uma contextualização crítica e detalhada de um personagem. Não é apenas a mudança pelo choque ou para “ser diferente“. O roteiro não descaracteriza ninguém ao longo do processo, e faz duas coisas que muitos westerns contemporâneos não conseguem mais fazer, que é estabelecer a mudança com justificativas que o espectador consegue compreender não apenas no momento presente dessas pessoas. Sem ter a necessidade de flashbacks e lançando mão de diálogos curtos e imensamente significativos, a diretora nos faz entender traumas e desejos reprimidos que complementam o mapa psicológico dos homens protagonistas em cena, e inclusive nos faz entender a relação que eles têm com Rose (Kirsten Dunst), mulher-símbolo na história, representando coisas diferente para cada um: amor e companhia tardia, amor e razão de viver, ódio e ameaça.

O inesperado é a arma de Ataque dos Cães. O que se vê além da superfície? De que atos uma pessoa é capaz para se livrar de uma ameaça, para salvar a vida de alguém que ama? A sutileza e a maneira bem compassada com que a diretora guia o filme dá inúmeras respostas para essas perguntas, considerando também o acaso e o “aproveitar-se inteligentemente de uma oportunidade” única. Ao cabo, a maneira brusca como o roteiro resolve as questões é que derruba o filme alguns degraus. A montagem parece perder o ritmo seguro e a excelente escolha de imagens, até então, parece querer desviar um pouco a nossa atenção, como se desejasse esconder “o motivo do fim“.

Seja em Montana, em 1925, ou em qualquer lugar do mundo em nossos dias, o que muitos indivíduos deixam escapar é algo que a sabedoria popular já desmistificara há tempos, e cuja lição parece não ter sido plenamente aprendida: “as aparências enganam” — frase que vale igualmente para quaisquer padrões sociais. Em ambientes de hostilidade e preconceito para com pessoas mais fracas, diferentes ou em menor número, isso é ainda mais sentido. Em obras como esta aqui, onde os personagens são verdadeiramente estudados, é possível ver o que está além da face, do corpo, da expressão, daquilo que se mostra para o mundo. E, como alguém em Ataque dos Cães descobre de forma bastante letal, há muita força e muita coragem em corpos aparentemente frágeis e delicados. Aquele surpreso amargor em meio à doçura que pega a todos de surpresa… muitas vezes tarde demais.

Ataque dos Cães (The Power of the Dog) — Reino Unido, Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, 2021
Direção: Jane Campion
Roteiro: Jane Campion (baseado na obra de Thomas Savage)
Elenco: Benedict Cumberbatch, Geneviève Lemon, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee, Kenneth Radley, Kirsten Dunst, Sean Keenan, George Mason, Ramontay McConnell, David Denis, Cohen Holloway, Max Mata, Josh Owen, Alistair Sewell, Eddie Campbell, Alice Englert, Bryony Skillington
Duração: 126 min.

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