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Crítica | Asterix – O Lírio Branco

O poder destrutivo do pensamento positivo.

por Ritter Fan
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  • Confiram, aqui, nossas críticas para todos os álbuns e filmes de Asterix e Obelix.

Chegamos ao 40º álbum da série regular das aventuras de Asterix com duas novidades, uma triste e outra surpreendente. A triste é que, se Asterix e o Grifo foi o primeiro álbum a ser publicado sem que nenhum dos dois criadores originais estivessem vivos, Asterix – O Lírio Branco é o primeiro a ser totalmente concebido, escrito e desenhado sem os grandes René Goscinny e Albert Uderzo. A novidade surpreendente é que, depois de escrever cinco álbuns a partir de Asterix entre os Pictos, Jean-Yves Ferri deixou a franquia para se dedicar a outros projetos, o que provavelmente indica algo como diferenças criativas e/ou questões de cachê. Em seu lugar, entra Fabrice Caro, que assina como Fabcaro, tornando-se o quarto escritor de Asterix e Obelix depois de Goscinny, o original, Uderzo que assumiu depois do falecimento do amigo e, claro, Ferri que foi escolhido por Uderzo para sucedê-lo.

Ferri vinha fazendo um trabalho consistentemente muito bom na série, mesmo tendo começado de maneira ainda tímida, o que é absolutamente natural. Mesmo assim, vejo sua saída com bons olhos, pois tende a manter a série de histórias iniciada nos anos 50 sempre fresca, já que ninguém em sã consciência pode esperar de qualquer novo escritor a capacidade inventiva febril de Goscinny. Fabcaro, portanto, tinha uma missão difícil de cumprir e fico feliz em constatar que ele consegue entregar um álbum esperto, de premissa diferente e interessante, mas ao mesmo tempo pé no chão, sem criaturas míticas ou viagens para muito longe, que faz belo uso de diálogos complexos que mantém a força crítica que a obra sempre teve.

Na história, Júlio César, diante de diversos casos de soldados deserdando seus postos, aceita o aconselhamento de Vicévertus (uso o nome original francês, pois o álbum não foi lançado no Brasil), Médico-Chefe do Exército de empregar uma abordagem psicológica que ele batiza de Lírio Branco e que consiste em impingir aos legionários a política de Pensamento Positivo. Apesar de estranhar, César aprova um projeto piloto em que Vicévertus precisa provar a eficácia de seu método usando-o para finalmente conquistar a aldeia de irredutíveis gauleses na Armórica. Seguindo imediatamente para o acampamento de Babaorum, o médico-psicólogo passa a usar seu palavreado repleto de floreios e de frases de efeito educadas e politicamente corretas para mudar a forma de pensar tanto dos legionários lá estacionados, como dos habitantes da aldeia.

A estranheza de César é potencialmente ecoada na estranheza que os leitores sentirão com essa premissa tão… como poderia dizer… boba e em princípio sem peso cômico, pois minha primeira reação foi justamente de torcer o nariz. No entanto, de certa forma, O Íris Branco revela-se como o anti-A Cizânia,  com a diferença principal, além da óbvia, sendo que o 15º álbum da série fazia com que Tulius Detritus semeasse discórdia instantaneamente e, aqui, Vicévertus e sua estratégia de amolecer corações e de basicamente tirar o senso crítico de todos ao seu redor é um processo bem mais lento que exige diversas visitas dele à aldeia gaulesa, algo que ele começa encantando o peixeiro Ordenalfabetix com seu aconselhamento sobre prestigiar os produtos locais sobre os peixes vindo da Lutécia (Paris) e, em seguida, seu inimigo mortal, o ferreiro Automatix e, depois, Naftalina, a esposa do chefe Abracurcix. Claro que o único que não cai no “papo mole” do romano é Asterix, que começa a perceber que tem algo de errado na presença dele ali.

Naturalmente, uma história que se vale da lábia de um personagem exige uma quantidade grande de texto e, com isso, os balões de fala são longos e, por vezes, até densos, com uma sucessão de bordões de autoajuda que maravilhosamente criticam justamente os livros do gênero que são oferecidos aos borbotões em livrarias e que normalmente tratam o leitor com extrema condescendência. Diante dessa verborragia incomum em sua constância, a leitura é consideravelmente menos fluida que o normal, ainda que muito divertida, especialmente quando Asterix começa a usar o remédio do romano contra ele mesmo e com Obelix basicamente não entendendo nada que acontece ao seu redor.

Outro ponto relevante é que Fabcaro não consegue sustentar o plano original de seu personagem e faz uma virada de narrativa lá pela metade do álbum em que Vicévertus altera radicalmente sua estratégia e sequestra Naftalina (mas sem ela saber que está sendo sequestrada) para presenteá-la a Júlio César. É um twist inesperado, diria, que quase que recomeça a história com Asterix, Obelix e um choroso e desesperado Abracurcix comecem uma jornada atribulada até Lutécia para descobrir o que exatamente aconteceu com Naftalina. O autor, com isso, usa de diversas oportunidades para criticar a Paris moderna, seja ao criar o Charrete à Alta Velocidade para alfinetar o Trem à Alta Velocidade famoso pela França, seja ao fazer de Lutécia uma cidade tomada de grevistas (a mais antiga – ainda que verdadeira – piada sobre a cidade) e de gente pseudo-sofisticada de nariz em pé (outra piada antiga, mas verdadeira), mas não consegue levar a narrativa a um encerramento realmente interessante, que faça jus à sua premissa.

No lado da arte, Didier Conrad, que continua firme e forte na série, com cores de Thierry Mébarki, dá um show novamente. Pode até ser uma heresia afirmar, mas diria que Conrad já conseguiu ultrapassar o nível de Uderzo, pois seu cuidado com detalhes é impressionante, assim como sua habilidade em preencher os quadros mais tumultuados de maneira precisa, lembrando a genialidade de George Pérez nesse aspecto. A aldeia gaulesa e Lutécia, nos traços de Conrad, são vivas e empolgantes em cada minúcia e, aqui, ele ainda desenha “em desvantagem, já que o texto de Facbaro, como disse, ocupa um grande espaço normalmente disponível para a arte.

O Lírio Branco é outro acerto da fase pós-criadores originais de Asterix e Obelix e um começo sólido de Fabcaro no projeto. Tomara que, com o tempo, ele alcance e ultrapasse o nível de seu antecessor, solidificando-se de vez como a nova voz dos hilários e irredutíveis gauleses.

Obs: Como os leitores de Asterix no Brasil sabem bem, com a troca da licença da Editora Record para a Panini e, depois, de volta para a Record, os álbuns da série deixaram de ser publicados simultaneamente por aqui desde 2017. Somente em setembro de 2021 é que o 37º álbum da série (Asterix e a Transitálica), lançado mundialmente em 2017, foi publicado por aqui, com o 38º (Asterix e a Filha de Vercingetórix), de 2019, só saindo em 2022, com o 39º (Asterix e o Grifo), de 2021, que, aliás, foi publicado simultaneamente em nada menos do que 20 línguas, ainda sem lançamento por aqui. Portanto, a crítica foi feita com base na leitura do original em francês.

Asterix – O Lírio Branco (Astérix – L’Iris Blanc – França, 26 de outubro de 2023)
Roteiro: Fabcaro (Fabrice Caro) (baseado em criação de René Goscinny e Albert Uderzo)
Arte: Didier Conrad
Cores: Thierry Mébarki
Editora original: Hachette Asterix
Editora no Brasil: não lançado no Brasil à data de publicação da presente crítica
Páginas: 48

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