Em Asterix na Hispânia, René Goscinny nos apresenta a Péricles Conchampiñon y Champiñon, filho de Conchampiñon y Champiñon, chefe de uma irredutível aldeia espanhola que se recusa a se deixar ser assimilada pela dominação romana. O mimado moleque, carinhosamente apelidado de Pepe, é um pestinha que, ao ser contrariado, dá um escândalo e prende a respiração até conseguir o que quer, em uma hilária representação da juventude paparicada de todas as épocas.
E bota “hilária” nisso, pois Pepe não só é um garoto irritante que adoramos amar, como, também, graças aos traços de Albert Uderzo, é absolutamente irresistível. Pepe é a alma desse álbum que, claro, é o veículo que Goscinny usa para carinhosamente “descer a lenha” nos espanhóis.
Novamente, a premissa é muito simples: para completar sua vitória na Península Ibérica, Júlio César sequestra Pepe para forçar seu pai a se render. O centurião Claudius Acendealus, então, tem que escoltar o garoto até o campo fortificado romano de Babaorum, na Gália, sob o comando do centurião Apagalus, para que lá ele fique aprisionado. Mas a tarefa de Acendealus é mais complicada do que ele poderia imaginar não só pela ranhetice do menino, que faz gato e sapato de seus legionários, como também graças ao encontro fortuito com Asterix e Obelix que, como de costume, estão caçando javalis. Ao depararem-se com os romanos, eles enchem a guarnição de sopapos e resgatam Pepe, que continua teimoso, orgulhoso e cheio de vontades também na aldeia gaulesa, sob o comando de Abracurcix. Sem alternativas, nossa dupla de heróis, então, tem que devolver Pepe a seu pai em uma odisseia até o que um dia viria a ser a Espanha.
Pepe contagia e contamina todos ao seu redor com sua mania de tapar a respiração até ficar vermelho como um tomate a ponto de explodir. Nós, os leitores, nos escangalhamos de rir a cada vez que isso acontece, graças a maneira nonsense que Goscinny trata a relação do jovem com Obelix, que morre de ciúmes dos laços de amizade do garoto com Ideiafix e dos dois com Asterix, que quer objetivamente cumprir sua missão. O maior obstáculo é mesmo o centurião Acendealus que, sozinho, quer evitar a devolução do moleque, já que isso significaria sua desgraça perante César. Ele se disfarça de espanhol e a diversão se intensifica, com estereótipos atrás de estereótipos que vão desde a caracterização da aldeia de Pepe como em filmes de faroeste spaghetti, com os adultos como bandoleiros mexicanos, com direito a caveira de touro pendurada, “olés” e uma arrogância infindável, até estocadas na indústria de turismo e as más estradas espanholas (na década de 60, claro, hoje não mais), além da dança flamenca, castanholas (os joelhos de Acendealus batendo) e, lógico, a “invenção” da tourada por Asterix (politicamente incorreto hoje, mas hilário no texto).
Apesar de repetir as piadas, Goscinny de alguma forma as mantém frescas e igualmente engraçadas a cada nova forma de abordá-la. E ver o menino Pepe prender a respiração é algo que só de lembrar já traz um sorriso ao rosto.
Albert Uderzo se diverte com a recriação da Hispânia com a utilização do máximo de estereótipos possível, como mencionei acima, resultando em momentos engraçadíssimos por si só. O mesmo vale para a versão “Antes de Cristo” dos trailers de turistas godos e gauleses em férias: são bois puxando carroças que são literalmente pequenas casas, com chaminés e tudo mais. Asterix na Hispânia é, definitivamente, mais um “olé” de Goscinny e Uderzo!
Curiosidades:
– Latim: Veni Vidi Vici. A famosa frase em tese dita por Júlio César perante o Senado para descrever sua vitória sobre Fárnacles II na Batalha de Zela, significa, em português, “Vim, Vi e Venci”.
– Latim: Beati Pauperes Spiritu. Apagalus diz a Acendealus quando o primeiro diz que “no fim deu tudo certo”, mesmo depois de terem apanhado de Asterix e Obelix e perdido Pepe. Trata-se da frase de abertura do chamado sermão da montanha de Jesus Cristo, conforme São Mateus e significa “bem-aventurados os pobres de espírito” em sua literalidade ou, dentro do contexto, algo como “bem-aventurados os simples”.
– Latim: Panem et Circenses. Simplesmente “pão e circo”, mas seu significado é maior do que isso. Trata-se de frase crítica à política de criação de diversões para que o povo esqueça das verdadeiras mazelas. É uma política usada pelos romanos assim como muitos governos atuais, diga-se de passagem. A expressão em si teria sua origem nas Sátiras de Juvenal (Sátira X, 77–81), poeta romano.
– Reparem na aldeia hispânica e nos hispânicos. São desenhados como mexicanos em westerns spaghetti.
– Pela primeira vez, o navio pirata é atacado, mas não afundado pela dupla.
– A brincadeira com os “carros pequenos”, típicos dos europeus, é mais uma vez usada por Goscinny (ele faz menção a isso em A Foice de Ouro).
– Asterix, Obelix e Pepe encontram dois cavaleiros, um em um cavalo, outro em um jumento. São a versão de Uderzo para Don Quixote e Sancho Pança, com direito a menção aos moinhos.
– Estereótipos hispânicos: espanhóis festeiros, estradas ruins, todas as cidades têm procissões religiosas, turismo extorsivo, castanholas, dança flamenca, tourada. Está tudo lá.
– Asterix inventa a tourada.
– Pepe, ao ver os joelhos de Acendealus tremendo e batendo um no outro, repara no “som” que eles fazem, em referência às castanholas.
– O maestro visto na arena é uma caricatura de Gérard Calvi, maestro e compositor francês que efetivamente trabalhou nas trilhas sonoras de desenhos de Asterix.
– A frase de Automatix no banquete final – “Um peixe, um peixe, meu reino por um peixe.” – é referência direta à frase de Ricardo III na peça de mesmo nome escrita por William Shakespeare.
– Esses volume mostra, pela primeira vez, uma briga entre os aldeões gauleses iniciada pela rivalidade entre Automatix e Ordenalfabetix.
Locais:
Menções: Munda (Montilla), Lugdunum (Londres), Pireneus (cordilheira entre a Espanha e a França), Carnac (cidade conhecida por seus ares de mistério, com menires e dólmens antiquíssimos e que são “explicados” no álbum), Burdigala (Bordeaux).
In loco:
– Acampamento fortificado romano de Babaorum, um dos que cercam a aldeia gaulesa.
– Aldeia hispânica comandada por Conchampiñon y Champiñon.
– Aldeia gaulesa.
– Pompaelo, atualmente Pamplona.
– Cauca, atualmente Coca.
– Segovia, atualmente Segóvia (sim, só um acento de diferença).
– Helmantica, atualmente Salamanca.
– Corduba, atualmente Córdoba.
– Híspalis, atualmente Sevilha.
Personagens (além de Asterix e Obelix):
– Júlio César, ditador romano.
– Conchampiñon y Champiñon, chefe da aldeia hispânica.
– Péricles “Pepe” Conchampiñon y Champiñon, filho do chefe da aldeia hispânica.
– Claudius Acendealus, centurião romano que escolta o filho do chefe hispânico até a Gália.
– Centurião Apagalus, comandante de Babaorum.
– Abracurcix, chefe da aldeia gaulesa.
– Ordenalfabetix, peixeiro da aldeia gaulesa em sua primeira efetiva aparição nas aventuras de Asterix e Obelix.
– Automatix, ferreiro da aldeia gaulesa.
– Chatotorix, bardo gaulês.
– Panoramix, druida gaulês.
– Ielossubmarina, esposa de Ordenalfabetix, em sua primeira aparição.
– Rubic, chefe bárbaro prisioneiro de Júlio César (que, segundo a história revisada por Goscinny, dá origem à expressão “a passagem do Rubicão”).
– Vistu, guia hispânico.
– Filemiñón Y Beicón, locador hispânico de carroças.
– Macambus – centurião romano.
- Crítica originalmente publicada em 28 de janeiro de 2015. Revisada e atualizada para republicação hoje, 24/06/2020, como parte da versão definitiva do Especial Asterix do Plano Crítico.
Asterix na Hispânia (Astérix en Hispanie, França – 1969)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote (serializada em 1969 e lançada em formato encadernado em 1969)
Editoras no Brasil: Record (em formato encadernado)
Páginas: 50