Desde 2010 o cinema foi agraciado com ótimas produções sobre a importantíssima Primavera Árabe, como o recente The Square, distribuído pela Netflix, que chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Documentário. Essas obras que buscam retratar tal revolução, contudo, em geral, são documentários, algumas utilizando filmagens de celular ou câmeras amadoras daqueles que presenciaram as movimentações. Assim que Abro Meus Olhos foge do gênero e decide abordar a questão através da ficção, uma manobra ousada da diretora estreante tunisiana, Leyla Bouzid. O que a obra demonstra, contudo, soa tão real e tão próximo de nossa realidade, que acabamos esquecendo, em alguns pontos, que não estamos diante de algo documental.
A trama gira em torno de Farah (Baya Medhaffer), uma jovem, prestes a ingressar na faculdade, que corre atrás de seu sonho de ser cantora participando de uma banda. O sonho inocente ganha perigosas proporções em virtude do teor político das letras cantadas pela garota, que falam da situação atual de seu país, que vive uma ditadura (ainda que disfarçada através de constantes reeleições) marcada pelo golpe realizado por Zine El Abidine Ben Ali, que se manteve no poder por vinte e três anos. Isso tudo, naturalmente, acaba provocando um enorme medo na mãe de Farah, que teme a captura de sua filha pela polícia tunisiana.
O elemento que imediatamente capta nossa atenção em Assim que Abro Meus Olhos é a realidade que permeia toda sua narrativa. Através da constante câmera na mão a diretora mescla a linguagem da ficção com a documental, sentimos como se os personagens que vemos em tela realmente existissem. Naturalmente que eles representam centenas de pessoas que lutaram, seja através da música, ou de manifestações, na Revolução, mas a maneira como são retratadas, de forma extremamente naturalista, é o que garante a alma do longa-metragem. Ao focar quase que exclusivamente (exceto no trecho final) em Farah, nos aproximamos dela e passamos a entender a forma como ela pensa, sem ser necessário muitos diálogos expositivos. Toda a situação do país fica claro sem que o roteiro nos precise explicar a conjuntura política ali vigente.
Evidente que a atuação de Baya Medhaffer só tem a acrescentar nessa construção da diretora. Apesar de ser seu primeiro trabalho como atriz, ela se destaca pela sinceridade de sua interpretação, não pecando por exageros dramáticos comuns a atores e atrizes estreantes. Por si só, ela conta com a força de movimentar a narrativa, algo que somente aumenta quando levamos em consideração a relação da personagem com sua mãe, que parece ter, de fato, sido filmada no interior de uma casa de família. Entendemos a dor que a mãe sente, seu medo, o que vai gradualmente aumentando conforme a figura da polícia vai tomando mais forma com a progressão da projeção.
Esse foco familiar, contudo, muitas vezes acaba tirando a atenção daquilo que realmente importa na obra: o retrato da revolução. Em determinados trechos o escopo do filme diminui e soa como um drama familiar comum. Naturalmente que o perigo pelo qual passa a protagonista sempre se mantém em questão, mas nossa imersão acaba sendo quebrada quando há um distanciamento daquilo que esperamos ver no longa-metragem. Felizmente, momentos como esse são bastante ocasionais e não prejudicam nossa visão da obra como um todo, que consegue manter sua força apesar de seus eventuais deslizes.
Assim que Abro Meus Olhos nos deixa aflitos com seu desfecho, que perfeitamente representa o que muitos jovens passaram nos turbulentos anos marcados pela Primavera Árabe, isso sem falar todos aqueles que sofreram antes da revolução, de fato, estourar. Temos aqui um filme potente e praticamente obrigatório para sentirmos como foi esse movimento. Mesmo como uma obra de ficção, sentimos a cada instante o realismo de sua narrativa, que nos transporta diretamente para o ano de 2010 na Tunísia.
Assim que Abro Meus Olhos (À peine j’ouvre les yeux) — Tunísia/ França/ Bélgica/ Emirados Árabes, 2015
Direção: Leyla Bouzid
Roteiro: Leyla Bouzid, Marie-Sophie Chambon
Elenco: Baya Medhaffer, Ghalia Benali, Montassar Ayari, Lassaad Jamoussi, Aymen Omrani, Deena Abdelwahed, Youssef Soltana
Duração: 102 min.