Talvez seja uma opinião equivocada, mas desde o lançamento de Assassin’s Creed Rogue, tenho a impressão que a franquia da ordem de assassinos tem recebido algumas críticas exageradas e muito ódio gratuito, algo que na minha visão influenciou a Ubisoft a explorar elementos cada vez mais místicos e de fantasia, bem como abordagens de RPG que fogem da identidade original dos jogos. Entendo que exista um elemento de repetição na série, indo do molde da história, o estilo de missões, até a jogabilidade, mas confesso que não me importo tanto com as similaridades entre os jogos, desde que a narrativa, o período histórico e os objetivos sejam ricos, envolventes e divertidos. Preciso, porém, ser honesto: não jogo a franquia há alguns anos, desde Odyssey, então talvez o fator de cansaço tenha tido um peso menor para mim em Assassin’s Creed Shadows, mais novo lançamento da série.
Para quem começou a acompanhar a franquia desde 2007 com Altair como eu, é um sonho ver o Japão Feudal adaptado para esse universo. Ambientado no século XVI, próximo ao final do período Sengoku, acompanhamos uma história que se passa durante a ditadura militar centralizada de Oda Nobunaga, época de intensas guerras civis que levaram ao fim do xogunato de Ashikaga Yoshiaki. Somos basicamente jogados em uma fase de transição do Japão, não apenas do modelo governamental – indo do sistema shogunal para o militar -, mas também de uma intensificação de urbanização e influências ocidentais no país, incluindo o desenvolvimento bélico com armas de fogo, bem como um apoio maior de Nobunaga para as missões dos jesuítas e o impacto do cristianismo na cultura budista e xintoísta nipônica.
Além disso, vale ressaltar que o recorte histórico aqui mostra o início de uma era efetiva de unificação e um período pacífico, pouco antes do xogunato retornar no começo dos anos 1600 sob a liderança de Tokugawa Ieyasu. O mundo do jogo cobre especificamente a região de Kansai, no centro do Japão, incluindo locais como Kyoto, Kobe, Osaka e a província de Iga, palcos de diversos eventos históricos importantes do país. Inclusive, Shadows é um dos jogos da série com o maior número de figuras reais importantes tendo bastante impacto na história, incluindo os já citados Oda Nobunaga, Ashikaga Yoshiaki e Tokugawa Ieyasu, mas também o samurai lendário Hattori Hanzo, Akechi Mitsuhide, Hashiba Hideyoshi, os missionários Luís Fróis e Alessandro Valignano, entre outros. Sem dúvidas, temos mais um jogo da franquia que fica completamente à altura no que se refere ao período histórico retratado e o pano de fundo da trama ficcional principal da guerra milenar entre a Ordem dos Assassinos e os Templários.
Falando de figuras históricas, um dos protagonistas é ninguém menos do que o famoso Yasuke, um samurai de origem africana que chegou ao Japão com os jesuítas. Aqui, conhecemos o personagem inicialmente pelo nome de Diogo, um escravo que acompanha uma delegação de missionários, sendo negociado com Nobunaga para dar passagem para sua missão cristã. Nos próximos meses, o personagem muda de nome para Yasuke e se torna um samurai, onde jogamos com ele em uma missão inicial antes de conhecermos Fujibayashi Naoe, uma shinobi/ninja que tem relações com a Ordem de Assassinos, recebendo uma missão de seu pai, logo antes do mesmo ser assassinado por uma organização mortal chamada Shinbakufu. Eventualmente, descobrimos que Naoe é a co-protagonista e, de maneira efetiva, a personagem com quem mais jogaremos ao longo da história principal que dura em torno de 50-60 horas – sim, isso mesmo que você leu!
Vou evitar o máximo possível de detalhes e spoilers do enredo, até por ser um jogo de lançamento recente, mas, em miúdos, o que temos é basicamente uma história de vingança (do lado de Naoe) e de justiça (do lado de Yasuke) entremeio a todo esse pano de fundo histórico, em que os dois protagonistas tentam desmascarar e eliminar os membros dessa organização perigosa. Os arcos dramáticos de ambos os personagens são relativamente simples, dialogando com questões morais complexas e um senso de honra que vai crescendo à medida que os dois entendem que suas guerras pessoais estão vinculadas com eventos muito maiores do que eles. É nesse ponto que a narrativa básica ganha contornos substanciais, explorando elementos históricos e reorganizando a jornada de Yasuke e Naoe em torno dos acontecimentos com as figuras reais que citei anteriormente, muitas das quais impactaram todo o futuro do Japão.
Em termos de jogabilidade, temos uma distinção clara entre os protagonistas. Naoe é a assassina perfeita, mesclando elementos de leveza, furtividade, parkour, artifícios de luta a longa distância e combates de proximidade rápidos, todas habilidades que a tornam excelente dentro dos conceitos da franquia, apesar da mesma ser extremamente fraca em termos de força bruta. Yasuke é exatamente o oposto, tendo dificuldade para escalar, para se esconder e para se movimentar com velocidade, o que o torna relativamente inútil para grande porção das missões, mas o samurai africano é o lutador mais forte da série desde Connor/Ratonhnhaké:ton, destruindo inimigos com golpes poderosos e impondo fisicalidade nas lutas de curta distância. Com exceção da missão inicial, passamos um longo período jogando com Naoe até Yasuke ser jogável novamente, momento em que podemos alternar entre os personagens. Suas skills diversas criam uma dinâmica interessante e um repertório estratégico para o jogador, apesar de que a produção falha em criar missões direcionadas para Yasuke, que acaba sendo escanteado por longas horas da história principal.
O mundo do Japão Feudal é simplesmente deslumbrante e com um nível de detalhe assombroso. Começando pela arquitetura e o design urbano, temos um número quase infinito de templos, castelos, distritos, províncias, portos e cidades visualmente riquíssimas. Por exemplo, podemos ver a influência militar em fortalezas impressionantes, com grandes muralhas e portões fortificados, enquanto construções mais simples seguem o estilo tradicional nipônico, influenciada pela religião e pela natureza, e menos pela defesa. Santuários budistas e xintoístas têm um design minimalista, com jardins zen, tatames e uma arquitetura ornamentada, enquanto moradias do alto escalão têm interiores com painéis e decorações cerimoniais.
A distinção urbana também é um destaque, com vilas pequenas de camponeses com casas de madeira, enquanto grandes cidades como Kyoto mostram a intensificação da urbanização com centros vibrantes, mercados, vendedores por tudo quanto é lado, casas de chá e portos lotados. O nível de ambientação e de imersão é um absurdo, sendo que muitas das vezes me peguei querendo apenas explorar o mapa em vez de fazer as missões principais, valendo ressaltar como a arquitetura realça o parkour, muito melhor aqui do que em obras recentes da franquia que me lembro. Nesse sentido, importante notar que a interação também é um detalhe positivo, com quase tudo do jogo tendo vida própria em missões secundárias que vão fundo nos elementos dessa cultura e desse ambiente, com minha única crítica sendo a estupidez dos NPC’s, mesmo em graus de dificuldade maiores, mas isso é quase parte da mitologia da série.
Paisagens naturalistas ganham espaço também, com muitas florestas densas, campos de arroz, diversas montanhas e colinas que cobrem grande parte do território. O interessante é que temos o melhor sistema de climas da franquia, com transições visuais claríssimas entre as estações, e que impactam na jogabilidade, como na locomoção difícil durante o inverno ou no modo de furtividade melhor durante o verão chuvoso. Sem falar que é um deleite estarmos num momento vendo as cerejeiras da primavera, depois folhas vermelhas dançando no outono, e no outro as montanhas cobertas de neve no inverno. Mais uma vez, a sensação de imersão e de que esse mundo está pulsando é quase indescritível, dando gosto de passar horas e horas navegando pelos territórios.
Meu maior criticismo à Shadows acaba sendo direcionado para as missões. Apesar da trama ser relativamente simples, como já pontuei, a campanha é extremamente longa, com uma certa falta de variedade. Em síntese, vamos de um assassinato a outro da organização Shinbakufu. Sei que isso é a base da franquia, mas vai se tornando um pouco cansativo, seja porque a história poderia ser melhor comprimida, seja porque muitos dos objetivos são semelhantes. A falta de um relevo dramático na trama bem batida de vingança com Naoe ou de justiça e honra com Yasuke (um samurai bem puro) também atrapalha nesse sentido, com muito do jogo parecendo uma espécie de loop. À medida que os atos dos co-protagonistas se tornam enrolados com traições políticas e reviravoltas militares, o jogo ganha certos impulsos melhores, incluindo missões com um senso maior de urgência.
Além disso, mesmo quando o jogo tenta variar tematicamente, temos alguns problemas. Por exemplo, temos segmentos inteiros de cerimônias de chá, rituais religiosos, meditações espirituais e objetivos nesse sentido mais cultural, que, de certa forma, são curiosos e que elevam o grau de ambientação, mas que, honestamente, são tremendamente tediosos – tem um recorte inteiro que precisamos aprender etiquetas para um jantar, para dar um exemplo concreto para vocês. Em determinados momentos a produção acerta na abordagem bucólica, mas flerta em diversos trechos com a letargia, até porque alguns desses núcleos encapsulam alguns clichês cinematográficos nipônicos bem convencionais. Felizmente, a falta de linearidade das missões dá uma certa liberdade ao jogador, que pode alternar da melhor forma que achar possível.
Mais uma vez, o mundo rico ajuda a suavizar esses problemas, valendo destacar o mapa grandioso e a forma como as distâncias e direções do mesmo exigem que exploremos os espaços narrativos – o jogo também aposta na possibilidade de recrutamento e treinamento de uma rede de espionagem para coletar informações e enriquecer a influência dos protagonistas na região. Em termos de jogabilidade, temos o estilo bem padrão da franquia, com furtividade e parkour sendo a dieta para as missões de roubos e furtos e, quando necessário, Yasuke aparece com força bruta para carregar estilos mais romantizados de samurais batalhando, com violência gráfica, sangues jorrando em todos os golpes viscerais e uma característica cinemática para suas ações. Gosto de tudo nesse lado da gameplay, dos combates às movimentações dos personagens, apenas com a ressalva que citei sobre a falta de missões direcionadas para as habilidades de Yasuke. Outros dois pontos de Shadows valem elogios: 1) o inventário e a evolução de armas, indo de katanas, shurikens, arcos, yaris, arpéus, kusarigama e armaduras, bem como de skills dos personagens, que têm impacto prático na forma tática e estratégica do jogo; 2) uma área do jogo em que podemos criar construções e vários outros elementos, dando um quê de The Sims dos assassinos que é bem divertido, até na forma como o jogador acaba se tornando um designer de interiores, se quiser.
Saindo um pouco do Japão Feudal, queria falar sobre como Shadows descarta o quadro geral da franquia. Eu sei que os blocos no futuro têm ficado cada vez mais escassos e que a parte realmente divertida está na campanha dos períodos históricos, mas não gosto de como os elementos da saga são quase subsidiários aqui, com a guerra com os Templários ganhando pouquíssimo espaço. Para além da identidade visual e jogável, há pouco em termos de mitologia no jogo que avance ou evolua a narrativa que perpassa todos os jogos. Posso estar errado, mas sinto que a Ubisoft está indo cada vez no caminho de fazer experiências autocontidas que pouco conversam entre si e que não agregam para uma conclusão do universo. Isso acaba impactando pouco o jogo em si, mas é um problema que tenho com a saga como um todo.
No mais, é difícil não gostar de Assassin’s Creed Shadows, outra entrada da série que, se não é um dos melhores da franquia, por conta dos problemas que já citei, ainda tem um mundo do Japão Feudal que absorve o jogador de tal forma que você simplesmente não quer sair da campanha, por mais repetitiva que ela possa ser em determinados blocos, principalmente quando a narrativa navega por elementos culturais e eventos reais interessantíssimos desse período nipônico. A riqueza histórica, as simbologias do enredo, o escopo da exploração e o deslumbro visual são acompanhados por uma trama de vingança eficiente, dois protagonistas carismáticos que geram uma dinâmica de jogabilidade com boa variedade entre o samurai e a ninja, alguns elementos de RPG que agregam para a evolução da ação e da aventura, e uma dieta de missões que, sim, podem ser “mais do mesmo” dentro dos conceitos da série, mas que seguem envolventes e muito divertidas de jogar. Me chamem de nostálgico ou de confortável, mas continuo gostando de desbravar períodos históricos com essa Ordem de Assassinos que ainda tem muitas épocas para adaptar, apesar de, no momento, eu querer outros jogos em períodos diferentes desse Japão Feudal tão intenso e idílico.
Assassin’s Creed Shadows
Desenvolvedora: Ubisoft
Lançamento: 20 de março de 2025
Gênero: Ação, Aventura
Disponível para: PS5, Xbox Series X/S, PC