É até difícil acreditar que uma história como esta de Assassinos da Lua das Flores tenha realmente acontecido. E para a nossa consternação e teste de humanidade, temos diante de nós as provas, os mortos e as memórias desse banho de sangue que, de fato, existiu, tendo marcado para sempre a nação indígena Osage, no Estado de Oklahoma, durante a década de 1920. Em mais um aplaudível trabalho de jornalismo histórico-investigativo, o escritor David Grann (autor de Z, a Cidade Perdida e de O Wager: Um Conto Sobre Naufrágio, Motim e Assassinato) se debruça sobre um chocante acontecimento, indo em busca de fontes históricas, muitas delas inéditas, para construir uma narrativa que, se não soubéssemos estar baseada em fatos, tomaríamos como “exagero narrativo de uma impressionante ficção histórica“. Infelizmente, porém, nada é fictício aqui.
Nos anos 1920, a nação Osage (NiuKonska ou Ni-U-Kon-Ska, “filhos das águas médias“), tinha a população de maior riqueza per capita do mundo. O fato de possuírem valiosos poços de petróleo em suas terras, fazia com que tivessem uma vida muito diferente do que se poderia imaginar de qualquer povo originário, e os milhões que possuíam não ficaram longe do escrutínio sensacionalista da imprensa. Na primeira parte do livro, David Grann faz uma ampla cobertura de como os jornais da época noticiavam o cotidiano e as inúmeras posses dos Osages milionários, com manchetes que iam do exagero paternalista às avaliações abertamente racistas. Já nesses capítulos iniciais, o leitor sabe que, justamente por conta da dinheirama desses indígenas, misteriosos assassinatos começaram a acontecer na reserva e em cidades próximas, de modo que toda a próspera demonstração inicial vira uma macabra motivação para o que se verá, em violentos e explosivos detalhes, nos capítulos seguintes.
O modo de investigação de Grann é identificador e analítico, ancorado essencialmente em fontes históricas. Isso faz com que sua obra tenha um número muito grande de citações de jornais, revistas, artigos, livros, depoimentos, documentos jurídicos, relatórios do FBI e diários pessoais. É um trabalho primoroso de pesquisa, sempre recorrendo a uma variedade de fontes primárias (muitas delas, inéditas, quando falamos de publicações sobre esse caso) e não possui adendos pessoais deturpadores ou intimamente conclusivos, ignorando os fatos examinados. É por conta de trabalhos rigorosos e bem apresentados como este, que eu tenho um problema colossal com a maioria dos jornalistas que se dispõem a escrever sobre História. Poucos profissionais desta área realmente abordam a temática pretendida a partir de um ponto honestamente factual, sem inventar narrativas a partir de uma situação isolada ou construir uma tese anacrônica e revisionista a partir de indícios de História Oral não conferíveis e nem confiáveis.
O máximo de inserção pessoal que David Grann se permite são descrições líricas que faz das colinas e planícies Osages; descrição de sensações térmicas para algumas estações do ano; e percepção de um sentimento geral na esteira de alguns eventos, como a descoberta de um novo corpo indígena morto, ou o resultado de uma parte da investigação. O bloco final do livro (O Repórter), assume uma narrativa em primeira pessoa e descreve parte do processo de investigação das fontes (me lembro o trabalho de De Hamel em Manuscritos Notáveis), assim como uma abordagem de “legado” do Reinado de Sangue. É um momento estranho na obra, porque dá um grande salto de tempo, promete algo novo, tão intenso quando o que tivéramos antes, mas só traz uma informação que qualquer leitor poderia inferir sem grandes problemas: as mortes dos Osages começaram bem antes do Reinado de Terror, terminaram bem depois, e não se centraram apenas nas confabulações do “rei do crime” local, o grande vilão que o FBI levou a julgamento. Consigo entender a necessidade de uma exposição desses eventos até o final dos anos 2010, a fim de indicar que o problema em relação aos nativos e suas terras ainda trazem fantasmas do passado e problemas no presente, mas não há como negar que este é um ponto estranho em relação ao projeto como um todo.
Um dos pontos interessantes deste livro é a exploração de duas experiências históricas ao mesmo tempo. Num nível central, expande-se a mortandade criminosa de Osages durante a década de 1920, com assassinatos cometidos por pessoas que queriam tomar as terras ou o dinheiro das vítimas. Num nível secundário, vê-se o quanto o caso foi importante para a estruturação do Bureau of Investigation, que logo se tornaria Federal Bureau of Investigation (FBI), desde 1924 sob o comando de sua mais icônica figura: J. Edgar Hoover. O autor conseguiu relacionar bem os crimes em Oklahoma e o Departamento de Investigação, chegando a criar excelentes parágrafos de tensão e suspense, principalmente durante o julgamento de William King Hale e Ernest Burkhart. Na composição narrativa, a única coisa que me incomodou foram os parágrafos de contexto distanciado, ou seja, sobre coisas que não tinham diretamente a ver com a trama, servindo apenas de curiosidade adicional. O mais chateante desses momentos é a longa jornada que o autor faz sobre o pai do investigador Tom White, apenas para criar ingredientes mínimos de identificação entre pai e filho, assim como de origem para alguns comportamentos profissionais do rebento.
É impossível não sentir muita raiva durante a leitura de Assassinos da Lua das Flores. E não apenas uma raiva diante dos horrendos crimes cometidos contra os Osages, por conta de dinheiro e terras ricas em petróleo. Temos raiva pela maneira como a justiça, em suas mais diversas instâncias, tratava os nativos. Como a corrupção e o racismo retiravam direitos e impediam que essas pessoas recorressem a locais confiáveis, receberem bons aconselhamentos ou até mesmo gastar o próprio dinheiro. Muitos nativos eram obrigados, por lei, a depender de um curador financeiro branco, capaz de controlar o que deveria ou não ser gasto pelo “selvagem de sangue puro“. A raiva se torna ainda maior quando notamos que muitos dos crimes só se tornaram possíveis justamente porque o Estado forçava a tutela financeira aos nativos, e porque muitos desses curadores, médicos, homens da lei e políticos viam os Osages apenas como pessoas para as quais não valia a pena muito esforço de bom tratamento.
David Grann consegue esmiuçar a existência social, política, cultural e econômica da nação Osage ao longo de algumas décadas, mostrando como a satisfação garantida pela exploração mineral trouxe um recolhimento forçado, muito medo e um índice de óbitos nunca vistos em uma nação indígena daquele período histórico. Numa escrita acessível, atrativa e com momentos que deixam o leitor bastante tenso, o autor dá a conhecer esse horror social do início do século XX, refletindo sobre como a questão da terra, as leis, o conceito de liberdade, o acúmulo de riquezas e a propriedade privada só são coisas defendidas com unhas e dentes quando direcionadas a um tipo muito específico de pessoas. Para outros, como os Osages, o que sobra, além da dor, é a torcida para que alguém cumpra com sua obrigação social e faça valer lei. Mesmo assim, não há a garantia de que a justiça, em sua plenitude, seja feita.
Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI (Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI) – EUA, abril de 2017
Autor: David Grann
Editora original: Doubleday
Edição lida para esta crítica: Companhia das Letras (março de 2018)
Tradutores: Donaldson M. Garschagen, Renata Guerra
392 páginas