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Crítica | Assassinos da Lua das Flores (2023)

Terra, petróleo, sangue e coração.

por Luiz Santiago
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Assassinos da Lua das Flores é o título de um livro-reportagem histórico escrito por David Grann, lançado em 2017. Em dez anos de pesquisa, o jornalista recolheu todo tipo de material que conseguiu encontrar para reviver a história do massacre de nativos da nação Osage, em Oklahoma, após descobrirem que suas terras eram ricas em petróleo. Na primeira versão que concebeu para a adaptação deste livro, o diretor Martin Scorsese tinha um material bem diferente em mãos, pensando essencialmente no processo investigativo e na formação do FBI. Por conta da pandemia de Covid, as filmagens, que deveriam começar em março de 2020, no território dos Osage, foram adiadas indefinidamente, e até abril de 2022, quando o filme voltou à produção, muita coisa aconteceu: a Apple TV+ entrou como uma das financiadoras do projeto e o roteiro mudou radicalmente de viés narrativo. Nesta segunda versão, a obra contava o horror sofrido pelos indígenas, não a sua consequência. E, para isso, o ponto de vista tomado foi o dos assassinos, num faroeste macabro onde a tensão, o suspense e a desenfreada violência dão o tom das relações sociais.

Talvez o primeiro encanto que o espectador tem com Assassinos da Lua das Flores venha através dos figurinos de Jacqueline West, especialmente quando falamos dos Osages. O recorte de época (anos 1920), a paleta de cortes das roupas seculares e todos os adereços tradicionais daquele povo, especialmente as mantas, possuem um impacto visual imediato e nos fornecem o primeiro grande contraste da trama: a aparência de aconchego e solidez em oposição à fragilidade daqueles indivíduos nas mãos de brancos que dividiam a mesma terra e estavam de olho nos milhões que o ouro negro trazia para a nação originária. A tese de Scorsese é que a ganância que a prosperidade atrai faz pesar o olhar sobre a chamada “civilização americana“, encabeçada pelos descendentes de europeus, que então dominava e transformava o Oeste. Até certo ponto, esta é a visão explorada nas entrelinhas, mostrando compassadamente a mortandade Osage e a chegada gloriosa dos novos tempos, com alguns homens fazendo carreira e levando uma vida de luxo e gastos, exaurindo os indígenas de todas as formas possíveis.

Na grande tela, a paisagem das terras que inspira poesia, os rituais com caráter de lamento (desde o início, demarcados pela noção de que “estão desaparecendo“) e a música de percussão muitíssimo discreta, quase ausente, de Robbie Robertson, deixam o espectador em um misto de emoções que se encaminham para a tensão e a preocupação. Vemos uma frieza calculada na direção de Scorsese, que narra o banho de sangue em sua origem, numa elegante jornada alinear, utilizando o processo (diegeticamente) natural dos eventos, para fazer com que o espectador acredite nos intervalos entre as mortes, suas consequências sociais e os impactos psicológicos que têm para os personagens centrais. Nessa linha dramática é que se destaca, a princípio, Leonardo DiCaprio (Ernest Burkhart) em uma de suas grandes interpretações, vivendo um papel difícil, multifacetado, mas dentro de uma medida muito especial de emoções, contido até não poder mais. A contenção, a propósito, é um elemento chave para que o público entenda diferenças culturais e formas de olhar a vida entre brancos e indígenas. Numa das cenas sublimes do cinema contemporâneo, vemos a personagem inesquecível, enigmática, séria e riquíssima em nuances de Lily Gladstone (Mollie Burkhart) exigir a Ernest que fique em silêncio e parado, ouvindo a tempestade. Ali, o homem viciado em dinheiro e que falava demais, se continha. A mulher que falava de menos, ouvia a natureza. E o coração da dupla transbordava de paixão.

Em sua história de diversas camadas, Scorsese despe os indivíduos de suas vaidades e de seus desejos, confrontando-os com a realidade e, em um último caso, consigo mesmos. A história se afasta do livro para falar mais diretamente (e de forma incompleta) da formação de uma sociedade sob uma égide de corrupção e desumanidades transformadas em lei para subjugar grupos sociais vistos como inferiores (notem que o cineasta faz questão de colocar um newsreel sobre o massacre racial de Tulsa, em 1921, indicando que as vítimas não eram apenas os indígenas — sem contar que a Ku Klux Klan é mostrada desfilando também), e então se metamorfoseia em uma história de culpas individuais, justiça até certo ponto e descida dos personagens aos seus infernos pessoais. É talvez a parte mais difícil e mais fria da obra, na direção, enquanto se torna a mais emotivamente relevante e explosiva para os personagens. Aqui, a contenção é abandonada e as verdades vêm à tona. E eis que o personagem de Robert De Niro encontra o seu ápice, em uma interpretação assustadora e marcante, mas com uma construção automática para o ator, nada no nível de detalhe e profundidade que vimos em O Irlandês, por exemplo.

Quando a tragédia causada pela ganância se faz conhecer, através da investigação e do julgamento, a alma de Assassinos da Lua das Flores já tinha se revelado por completo. A decadência física de Mollie, a decadência emocional de Ernest, e a decadência sociopolítica de Hale são resultados individuais de algo que vinha acontecendo com um povo inteiro há muito tempo; como sintomas de uma antiga doença. Scorsese constrói a busca pela verdade e nos entrega uma vitória difícil de engolir, exibida num modelo metalinguístico que, confesso, tive dificuldade de aceitar bem. É verdade que o flerte com a reprodução de notícias, imagens e ideias desse povo estava sinalizada desde o início com os “documentários de cinema“; mas entre esses dois usos narrativos há um filme inteiro a ser considerado, de modo que o final dramático-jornalístico, num programa de rádio contando as histórias do FBI sob o comando de J. Edgar Hoover (a propósito, isso está no livro de David Grann), me pareceu um salto corajoso e deslocado.

Através das sombras noturnas, contrastes de silhuetas sob um terreno pegando fogo e ambientações visualmente soberbas da fotografia de Rodrigo Prieto — o que foi aquele quadro à la Rembrandt dos aliados de Hale recebendo Ernest para uma “conversa” antes do depoimento no tribunal? –,  Assassinos da Lua das Flores é um drama muito maduro no que entrega, mas que não aproveitou por completo aquilo que tinha para aproveitar, culminando numa sensação de falta (no bloco do relacionamento de Mollie e Ernest), e num final com duas rupturas de continuidade que podem ter inúmeros significados interessantes, mas que trazem efeitos problemáticos de unidade fílmica. Em nenhum desses momentos, porém, derruba-se a imponência do épico trágico do diretor, que mesmo não precisando provar nada para ninguém, ensina a todo mundo, mais uma vez, o que é um bom Cinema.

Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon) — EUA, 2023
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Martin Scorsese, Eric Roth (baseado na obra de David Grann)
Elenco: Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, John Lithgow, Brendan Fraser, Cara Jade Myers, Janae Collins, Jillian Dion, Jason Isbell, William Belleau, Louis Cancelmi, Scott Shepherd, Everett Waller, Talee Redcorn, Yancey Red Corn, Tatanka Means, Tommy Schultz, Sturgill Simpson, Ty Mitchell, Gary Basaraba, Charlie Musselwhite, Pat Healy, Steve Witting, Steve Routman, Gene Jones, Michael Abbott Jr., J.C. MacKenzie, Jack White, Larry Sellers
Duração: 306 min.

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