Publicado no Reino Unido em 1º de janeiro de 1934, Assassinato no Expresso do Oriente foi o 19º livro escrito por Agatha Christie e um dos que marcariam para sempre a sua carreira, sendo lembrando, adaptado para diversas mídias e republicado centenas de vezes ao longo dos anos. A trama é um caso do detetive belga Hercule Poirot, que no início da história está vindo de Aleppo, na Síria, para Istambul, na Turquia, através do Taurus Express. Em sua rápida passagem pelo Hotel Tokatlian, o detetive recebe um telegrama de Londres, pedindo que cancelasse os compromissos em andamento e voltasse o quanto antes para a Terra da Rainha.
Tendo que pegar o primeiro trem disponível, Poirot acaba conseguindo uma passagem no Expresso do Oriente e, depois de uma luta para encontrar lugar (estranhamente, para o mês de dezembro, todas as cabines estavam ocupadas) e com a intervenção de seu amigo Bouc, diretor da Companhia Internacional Wagons-Lits, ele embarca. No meio do trajeto, um misterioso assassinato acontece. A pedido de Bouc, Poirot assume o caso. A investigação em um espaço fechado e sem intervenções externas será a coluna vertebral do livro.
Muita coisa torna este volume uma produção diferente da autora e o que mais se destaca é o esvaziamento de grandes acontecimentos em praticamente todo o miolo da obra. No início, temos uma série de apresentações e, mesmo que não haja nada de muito badalado, ao menos existem novidades rápidas e um pouco de humor para marcar o passo da leitura. As primeiras páginas, onde a autora narra o início da viagem no luxuoso trem, também são interessantes porque nos colocam personalidades de diferentes ocupações, nacionalidades e status sociais, o que nos ajuda, mesmo sem querer, a montar uma listinha de possíveis assassinos. Uma frase suspeita aqui, uma afirmação de “maldade no olhar ali“, uma esquiva de assunto delicado acolá. A trama avança bem, agora não com novidades, mas com pequenas pistas comportamentais, prévias de possibilidades para a investigação de um assassinato que acontecerá em pouco tempo.
Então vem a morte de Cassetti e o ritmo da narrativa muda assustadoramente. A nossa tenção é sustentada apenas por uma linha fina de intermináveis sequências de depoimentos. E é este o foco da maior parte do livro: a tomada de testemunhos por Poirot, assistido por Bouc e pelo Doutor Constantine, um médico grego contratado pela companhia. E como se não bastasse uma única rodada de depoimentos, temos uma segunda (!) mais ágil e mais instigante, é verdade, mas ainda assim, uma rodada que pode afastar alguns leitores ou pesar muito na opinião final a respeito do livro, para quem coloca em grande importância a manutenção do ritmo narrativo em uma obra. No meu caso, embora isso tenha tido peso (a estrela tirada na avaliação final vem daí), não me fez ver o livro com menos carinho ou deixar de aplaudir a autora pelo tipo de drama que ela criou ao lado da investigação. Um drama de profunda ordem moral e com um resultado que pode incomodar aos mais apegados à justiça pelos meios oficiais, sem concessões.
O crime aqui é cometido contra Cassetti, homem ligado a um sequestro que acabou com a morte de uma bebê, o que no Universo do livro foi matéria jornalística por toda a América. Acontece que Agatha Christie se baseou em um caso real e inseriu referências e nomes trocados ao retrabalhar o rapto de Charles Augustus Lindbergh, Jr., filho de 1 ano e 8 meses do aviador Charles Lindbergh e Anne Morrow Lindbergh, raptado do berço, em sua casa, em 1º de março de 1932. O resgate solicitado foi pago pela família, com notas marcadas, com a esperança de posteriormente identificar o sequestrador. Cerca de 2 meses depois, em 12 de maio de 1932, o seu corpo da criança foi encontrado por um motorista em uma estrada próxima à casa dos Lindbergh. O bebê tinha várias mordidas de diversos animais e uma grave fratura no crânio.
Agora imaginem vocês que pouco menos de dois anos após esses eventos, considerados “o crime do século” nos Estados Unidos, uma já muito famosa escritora britânica pegou o mesmo conteúdo e colocou como histórico criminoso de um de seus assassinados, dando espaço para uma espécie de ritual na ocorrência do crime, onde 12 pessoas diretamente envolvidas com a família da garotinha morta (no livro) — e ainda piora, porque ela não foi a única; outra criança já tinha morrido como consequência da quadrilha de sequestradores comandada por Cassetti — dão uma facada no homem responsável pelo crime. Cassetti tinha escapado da justiça americana por questões técnicas. Agora, as pessoas que tiveram o coração quebrado e viram uma família inteira ser despedaçada, uma bebê morta e outras mortes indiretas causadas por esta infâmia, tomaram a justiça para si e resolvem fazê-la com as próprias mãos.
Quando as suspeitas em relação aos passageiros aumentam e todo mundo começa a confessar as mentiras ditas no primeiro depoimento, o livro volta a ganhar agilidade. O marasmo quebrado apenas por pequenos achados (um quimono vermelho e a arma do crime) vai se dissipando e então vem o discurso final de Poirot, com todos reunidos e a apresentação de duas versões para o que tinha acontecido. É ótimo ver que o detetive não é tratado como um super-herói, sempre procurando seguir a Lei e a Justiça a ferro e fogo, especialmente em um caso onde a Justiça falhou.
A conclusão de Assassinato no Expresso do Oriente é muitíssimo satisfatória em termos de entretenimento e engajamento do leitor, já que o público também é feito criminoso, colocando-se do lado dos passageiros do trem, dando a sua própria facada imaginária. A discussão, aqui, apesar de trazer à tona elementos morais e éticos de peso, também reaviva o nosso adormecido instinto de vingança, que é manipulado com precisão pela autora na conclusão cheia de significados deste romance policial. Não é à toa que a chamam de Rainha do Crime. Ela realmente fez por merecer.
Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express) — Reino Unido, janeiro de 1934
Autor: Agatha Christie
No Brasil: Editora Nova Fronteira, 2014
Tradução: Archibaldo Figueira
200 páginas