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Crítica | Assassinato no Campo de Golfe, de Agatha Christie

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Terceiro livro publicado por Agatha Christie e apenas o segundo a apresentar o detetive belga Hercule PoirotAssassinato no Campo de Golfe é uma verdadeira viagem investigativa. Narrada pelo Capitão Arthur Hastings, a trama começa com a intrigante apresentação de uma personagem chamada “Cinderela”, cuja frase “que inferno!” choca a um dos passageiros do trem onde ela está — lembremos que o livro foi originalmente publicado em 1923, e uma moça soltando palavras de maldição em voz alta não era bem visto — e é a partir deste choque que o “homem das ideias antiquadas” e a “mulher das ideias modernas” se aproximarão, isto servindo de “ponto de encontro” para a autora finalizar a narrativa.

Livremente inspirado em um crime real que aconteceu na França, este romance tem uma das bases de mistério mais interessantes da primeira fase da autora. Não estamos lidando apenas com um enigma. Não existe apenas um crime. Nem uma única reviravolta. Ou cadáver. Tampouco existe aqui o modelo mais simples de ‘apresentação-investigação-solução’ do caso principal. A partir da narração em primeira pessoa de Hastings, que já aparecera como o “Watson de Poirot” em O Misterioso Caso de Styles (1920), somos inseridos na investigação do assassinato de Paul Renauld, um multimilionário que manda uma carta para Poirot pedindo que vá urgentemente à sua mansão na França, pois ele teme estar correndo perigo. Todavia, quando o detetive e seu assistente chegam à Villa Geneviève, o homem já estava morto.

Para um livro de começo de carreira, Assassinato no Campo de Golfe é tremendamente bem construído. O volume tem muitas personagens e todas possuem a sua voz na obra, inseridas de maneira coerente e fazendo sentido para cada bloco de uma investigação que vai da França à Inglaterra e termina com alguns dos envolvidos a caminho da América do Sul. Além disso, temos o protagonista que vem de anos de trabalho no Canadá e no Chile, tornando a história internacional e a investigação mais difícil de ser levada adiante. A dinâmica teria reflexos em obras futuras da autora, como em Os Relógios (1963), mas carrega um delicioso tom de trama francesa, especialmente porque não é apenas Poirot que está como detetive.

Há aqui o investigador “cão de caça” da Sûreté de Paris, Giraud, que é uma clara sátira que a autora faz de Sherlock Holmes, cujos métodos se diferenciam muito dos de Poirot. Giraud é um homem de ação, alguém que procura os mínimos detalhes, cujo nível de observação é altíssimo, mas pode incorrer em erros por confiar demais em pistas pequenas e assumir que qualquer coisa grande e óbvia, não tem importância alguma para o caso. As pistas deste livro provam o contrário. Eu imagino que alguém que goste muito de Holmes vá sentir uma pontada de provocação, até porque, se dependesse de Giraud, a pessoa errada seria condenada à morte, o que não é uma coisa legal de se pensar vindo de um detetive que é a sátira de outro bem importante para a literatura policial.

A relação entre Poirot e Giraud é hilária e dá combustível ao início das investigações, colocando método contra método. O leitor não pode deixar de ter um pouco de raiva de Hastings nesse momento, já que ele fica praticamente todo o início do livro babando Giraud e duvidando de seu amigo Poirot. Mas este não será  único momento que o personagem receberá olhares tortos. Ele viria depois com algo bem pior, uma atitude infantil, traidora e infame, sob muitos aspectos. Só mesmo um espírito iluminado como o de Poirot consegueria manter a amizade depois do acontecido. E mesmo que o leitor tente justificar que “a atitude acabou não dando em nada“, é bom lembrar que apenas Poirot sabia disso naquele momento. Até onde nós sabíamos ele estava ajudando uma criminosa a escapar, traindo o próprio amigo.

Fora isso, temos que engolir a estranhíssima paixão à primeira vista e o amor do Capitão sem mesmo conhecer, de fato, a misteriosa garota do trem. A cena em que ele se declara para ela é patética, especialmente se consideramos o momento em que isto ocorre. Tudo, porém, fica ainda mais estranho com a citação do casamento no final, apesar de ser uma ótima escolha da autora para estruturar o desfecho de maneira cíclica, já que o livro começou exatamente com os dois personagens, ainda estranhos um ao outro. Mas Hastings não é apenas odiável o tempo inteiro. Ele tem uma grande participação no livro, inclusive com observações que parecem simplórias mas ajudam a nós, leitores, analisarmos os aspectos do assassinato. Sem contar que a resolução aqui não é exposta de maneira professoral no último momento, ela vem antes e as 50 páginas finais servem para reviravoltas e acertos de conta.

É lícito dizer que este livro é boicotado pelos casinhos de amor, ou melhor, pelo “caos de amor” de Hastings e Cinderela. O mesmo não se pode dizer de Jack e seus casos, porque eles são orgânicos e fazem sentido para o próprio mistério encenado, para as mudanças de identidade e entrega de liberdade em prol do amor de outrem. Fora esse aspecto do livro, leitores mais exigentes não conseguirão engolir a absurda coincidência e conveniência de dois momentos que comento a seguir. Primeiro, o fato de Renauld comprar uma casa justamente ao lado da única pessoa que poderia reconhecê-lo. Depois, a imprudência dele e da mulher em planejar um plano tão intricado e revelador no jardim da mansão e, mais convenientemente ainda, o fato de alguém muito interessado estar ali para ouvir tudo.

Em seus mistérios e nas diferentes maneiras de enganar e distrair o leitor, Assassinato no Campo de Golfe é um ótimo livro. Há apenas alguns poucos momentos que a leitura deixa de ser fluída, mas nada que constitua um problema definitivo. O maior impasse é mesmo a linha amorosa envolvendo Hastings e as conveniências envolvendo os muitos mistérios que rondam a família Renauld. Para um livro de 1923, há uma linha bem progressiva de pensamento aqui, sendo a atitude de Hastings sutilmente ironizada pela autora, que faz questão de dar espaço para “Cinderela” brilhar na sequência final, fazendo algo que nem o Capitão e nem o Detetive foram capazes.

A despeito das rusgas na construção da trama (que chega a ser um pouquinho confusa nos capítulos finais) a leitura é divertida e há diversos momentos em que não conseguimos deixar o volume de lado. Sem contar que não há nada óbvio, apesar de toda a simplicidade apontada por Poirot no modus operandi e na revelação de quem é o assassino, afinal, este é um livro com muitos criminosos e muitos mistérios a serem desvendados.

Assassinato no Campo de Golfe (The Murder on the Links) — Reino Unido, 1923
Autor: Agatha Christie
No Brasil: Editora Globo Livros, 2014
Tradução: Ive Brunelli
293 páginas

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